Ipea: População de rua no Brasil cresce 10 vezes em uma década e chega a 227 mil pessoas

Estudo feito com base no CadÚnico aponta que exclusão econômica, problemas familiares e de saúde mental estão entre os principais fatores que levam a essa condição

 

Mais de 227 mil pessoas estavam oficialmente registradas como em situação de rua em agosto de 2023, no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Há uma década, o número total registrado era de quase 22 mil pessoas. Boa parte aponta como motivos para estar nessa situação questões econômicas, problemas familiares e aspectos relacionados à saúde, sobretudo mental. A maioria é formada por pessoas negras.

A exclusão econômica — que envolve o desemprego, a perda de moradia e a distância do local do trabalho — é citada por 54% das pessoas. A fragilização ou ruptura de vínculos familiares é citada por 47,3%. Problemas de saúde são apontados por 32,5%. As informações constam da pesquisa “A população em situação de rua nos números do Cadastro Único”, do especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marco Natalino, divulgada na segunda-feira (11).

O objetivo do levantamento é colaborar com o aprimoramento das políticas públicas voltadas à população em situação de rua.  O trabalho analisa os dados sobre a população em situação de rua disponíveis no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único ou CadÚnico), apresentando um quadro geral desse público. O Ipea alerta que o número não pode ser considerado como um censo oficial, pelas dificuldades que existem para fazer um levantamento fiel de todos que fazem parte desse grupo mais vulnerável.

Com relação às características dessa população,  as causas para a situação de rua apontadas na pesquisa não são excludentes, por isso os percentuais somam mais de 100% e algumas podem se cruzar em mais de uma categoria de análise dos dados.

“A pobreza, o desemprego e a falta de moradia adequada a preços acessíveis são os principais aspectos relacionados à esfera econômica. A insegurança alimentar e a falta de oportunidades de trabalho nas periferias e no interior levam as pessoas a sobreviverem nas ruas das grandes cidades como catadores de material reciclável, lavadores de carros, ambulantes e profissionais do sexo, entre outras ocupações”, aponta Marco Natalino no estudo.

Ele acrescenta que “há quase uma década, o Brasil vem enfrentando crises econômicas sucessivas. Até mesmo a insegurança alimentar grave, a fome, voltou a ser um problema nos últimos anos”. Quando analisados apenas os motivos individuais que levaram as pessoas às ruas, além dos problemas com familiares e companheiros (47,3%), aparecem razões como desemprego (40,5%), alcoolismo e outras drogas (30,4%), perda de moradia (26,1%), ameaça e violência (4,8%), distância do local de trabalho (4,2%), tratamento de saúde (3,1%), preferência ou opção própria (2,9%) e outros motivos (11,2%). Tais categorias podem se cruzar também, em respostas que apresentam mais de uma razão.

No que diz respeito à saúde mental, o pesquisador chama atenção para o peso que a questão tem para a entrada e a manutenção dessas pessoas na situação de rua, sobretudo considerando o preconceito que marca a vida dessa população. “Dentro da saúde mental, um elemento que tem que ser citado é a questão do uso abusivo de álcool e outras drogas. Infelizmente, as estigmatizações que normalmente vem junto com a discussão sobre drogadição e saúde mental de pessoas em situação de rua prejudicam sobremaneira a abordagem adequada da questão”, destaca.

Para ele, é preciso refletir sobre o fato de que a saúde de uma pessoa é resultado tanto de características individuais quanto de determinantes sociais. “Por exemplo, se durante a pandemia a população brasileira em geral teve que lidar com a fragilização da sua saúde mental — se não da sua própria, de alguém do seu círculo de intimidade — para a população mais pobre essa fragilização foi muitas vezes a gota d’água”.

 

Radiografia

Ainda de acordo com a pesquisa, 33,7% da população em situação de rua está nesta condição pelo período de até 6 meses, 14,2% entre seis meses e um ano, 13% entre um e dois anos, 16,6% entre dois e cinco anos, 10,8% entre cinco e 10 anos e 11,7% há mais de 10 anos. Quanto ao recorte racial, a pesquisa aponta que a maioria, 68%, se declara negra. Os autodeclarados brancos são 31,1%. E o número médio de anos de escolaridade entre os negros em situação de rua (6,7 anos) é menor que entre os brancos (7,4 anos).

A pesquisa mostra, ainda, que 70% da população em situação de rua mora no mesmo estado em que nasceu. E, embora as mulheres sejam somente 11,6% da população adulta em situação de rua, representam 35% das responsáveis familiares entre a parcela que vive com as famílias nessas circunstâncias. Mesmo entre os inscritos no Cadastro Único, 24% não possuem certidão de nascimento. Entre os adultos, 29% não têm título de eleitor e 24% não possuem carteira de trabalho. Apenas 58% das crianças e adolescentes de 7 a 15 anos e em situação de rua frequentam a escola. Pelo menos 69% da população adulta em situação de rua realiza alguma atividade para conseguir dinheiro, mas apenas 1% tinha um emprego com carteira assinada.

 

Política Nacional para a População em Situação de Rua

O levantamento do Ipea foi divulgado no mesmo dia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou investimento de R$ 1 bilhão para o Plano Ruas Visíveis – Pelo Direito ao Futuro da População em Situação de Rua, estruturado para promover a efetivação da Política Nacional para a População em Situação de Rua. A medida promove tem investimento inicial de R$ 982 milhões.

Na cerimônia, no Palácio do Planalto, Lula destacou a necessidade de iniciativas governamentais para apoio a essa população e para dar visibilidade sobre seus direitos. “Nós sabemos que, muitas vezes, o Estado não cuida dessas pessoas, muitas vezes a sociedade não se importa com essas pessoas e muitas vezes passamos por elas e viramos o rosto para não enxergar esta que é a realidade do descaso político, econômico e social desse país. Se essas pessoas existem, tem culpa, e a culpa não pode ser outra se não do Estado”.

Para o presidente, a população deve estar comprometida em eleger governantes preocupados também com as questões sociais. “Quando é que a gente vai convencer a humanidade que nós nascemos pra viver em comunidade, nós não nascemos para viver individualmente, cada um vivendo do jeito que pode. A Constituição diz que todos têm direitos elementares, está lá no fundamento do artigo que cuida da questão social; a Declaração dos Direitos Humanos diz, e por que a gente não consegue fazer? A gente não consegue fazer porque essa conquista que nós estamos tendo aqui hoje está ligada a uma palavra chamada democracia, está ligada a uma palavra chamada compromisso”, destacou.

O evento envolveu o anúncio de outras iniciativas, como a regulamentação da Lei Padre Júlio Lancellotti, a instituição de um grupo de trabalho para a produção de informações sobre população em situação de rua; a instituição do Programa Nacional Moradia Cidadã; e o lançamento oficial do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), instituído em setembro.

A Lei Padre Júlio Lancellotti proíbe a chamada arquitetura hostil em espaço público, como a construção ou a instalação de estruturas para dificultar o acesso de moradores em situação de rua. Aprovada pelos parlamentares no ano passado, a lei foi vetada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso e a lei foi promulgada.

O nome da lei é uma referência ao religioso padre Júlio Lancellotti, que, desde 1986, promove trabalhos sociais voltados principalmente para a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Lancellotti viralizou ao utilizar uma marreta para remover pedras pontiagudas que haviam sido instaladas pela Prefeitura de São Paulo em um viaduto na cidade, para evitar que o local fosse utilizado como abrigo pela população em situação de rua.

(Foto: GUJSP)

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