Resgate da obra de antigos sambistas marcou carreira da artista
Cristina Buarque, cantora e compositora, faleceu neste domingo (20), aos 74 anos, devido a complicações relacionadas a um câncer. A notícia foi divulgada pelo seu filho, Zeca Ferreira, nas redes sociais. Nascida do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, ela era irmã de músicos conhecidos como Chico Buarque, Miúcha e Ana de Hollanda. Nos últimos anos, Cristina havia se estabelecido na Ilha de Paquetá.
“Uma cantora avessa aos holofotes. Como explicar um negócio desses em qualquer tempo? Mas como explicar isso nesse tempo específico? Mas foi isso a vida inteirinha dessa mulher que tivemos, nós 5, a sorte grande de ter como mãe.
Uma vida inteira de amor pelo ofício e pela boa sombra. “Bom mesmo é o coro”, ela dizia, e viveria mesmo feliz a vida escondidinha no meio das vozes não fosse esse faro tão apurado, o amor por revirar as sombras da música brasileira em busca de pequenas pérolas não tocadas pelo sucesso, porque o sucesso, naqueles e nesses tempos, tem um alcance curto. É imagem bonita e nítida mas desfoca as outras belezas que se perderiam na sombra não fossem essas pessoas imunes ao imediato. Ser humano mais íntegro que eu já conheci. Farol, chefia, braba, a dona da porra toda. Vai em paz, mãe”, diz mensagem assinada por Ana, Zeca, Paulo, Antônio, Piiizinha, postada no Instagram por Zeca.
Lula se manifesta
Em nota, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva expressou pesar pelo falecimento de Cristina Buarque.
“Quero expressar meus profundos sentimentos pelo falecimento de Cristina Buarque. Cantora e compositora talentosa, teve um papel extraordinário na música brasileira ao interpretar as canções de alguns dos mais importantes compositores do samba carioca, ajudando a poesia e o ritmo dos morros do Rio a conquistarem os corações dos brasileiros. Aos seus familiares e ao meu amigo Chico Buarque, deixo minha solidariedade e um forte abraço“, disse o presidente.
Portela chora
A Escola de Samba Portela expressou seu pesar pela falecimento de Cristina Buarque, lembrando que ela era paulista e dedicou sua trajetória ao samba e à música popular brasileira. Sua carreira se destacou com o lançamento, em 1974, de um álbum que trouxe composições de importantes artistas da MPB, incluindo Cartola, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Manacéa e seu irmão, Chico Buarque.
Cristina, sempre ao lado da Velha Guarda da Portela, deixa atrás de si cinco filhos e um legado duradouro para o samba e a música do Brasil.
Fábio Pavão, presidente da Portela, acompanhado pelo vice-presidente Junior Escafura, a Velha Guarda da Portela e toda a comunidade portelense, manifestam seu apoio aos parentes, amigos e admiradores neste momento difícil, conforme declarado pelos representantes da escola.
“Descanse em paz, Cristina”, finaliza a mensagem.
A produção da artista
Conforme o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, em 1968, Chico Buarque, que era seis anos mais velho que sua irmã Cristina, a convidou para participar de seu álbum Chico Buarque Volume 3, onde cantaram juntos a canção Sem Fantasia, composta por ele.
Em 1974, foi lançado o primeiro álbum de Cristina, onde ela cantou um de seus grandes sucessos, “Quantas lágrimas“, de Manacéia, um compositor da Velha-Guarda da Portela. Nesse mesmo disco, ela registrou canções de outros renomados sambistas, como Dona Ivone Lara, do Império Serrano, e Nelson Cavaquinho e Cartola, ambos da Mangueira. Nessa fase, já era evidente uma de suas marcas: o trabalho de resgatar músicas de compositores clássicos das escolas de samba, em um verdadeiro esforço de busca. Assim, fez com Candeia, ainda nos anos 70, gravando em fita cassete diversas de suas composições inéditas e melodias incompletas.
Conforme registros do dicionário, em 1980, lançou o álbum Vejo amanhecer, que contou com a colaboração do conjunto Época de Ouro na canção Cantar, de Godofredo Guedes, que é o pai do artista Beto Guedes. O nome do álbum foi inspirado na música Vejo amanhecer, de Noel Rosa. No ano seguinte, apresentou o LP Cristina, que teve a participação especial da Velha-Guarda da Portela na faixa Vida de rainha, de Alvaiade e Monarco, além de Clementina de Jesus na canção Quando a polícia chegar, de João da Baiana. Também nesse ano, ao ser convidada para um álbum tributo a Geraldo Pereira, gravou a música Pode ser?, de Geraldo Pereira e Marino Pinto, e integrou o coro na faixa Se você sair chorando, de Geraldo Pereira e Nélson Teixeira.
Em 1987, lançou um compacto duplo de forma independente, em colaboração com Mauro Duarte, onde ambos apresentaram as canções “Resgate“ e “Deixa eu viver na orgia“. A primeira foi composta por Duarte e Paulo César Pinheiro, enquanto a segunda é uma parceria dele com Cristina. No ano seguinte, em 1988, co-produziu e contribuiu para o álbum “Candeia“, que foi lançado pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), registrando a música “Morro do Sossego“, de Candeia e Artur Poerner. Em 1989, a gravadora Ideia Livre lançou o disco “Homenagem a Paulo da Portela“, no qual, novamente junto a Mauro Duarte, Cristina interpretou “Quem espera sempre alcança“. Nesse mesmo ano, ela integrou os vocais de fundo em várias faixas do álbum “Mangueira chegou“, do grupo Velha Guarda da Mangueira.
No ano de 1998, fez parte do álbum Chico Buarque de Mangueira, onde interpretou diversas músicas, incluindo “Favela“, de Padeirinho e Jorginho Pessanha, “Como será o ano 2000“, também de Padeirinho, em parceria com Carlinhos Vergueiro, “Polícia no morro“, de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, e “Agoniza mas não morre“, de Nelson Sargento, novamente ao lado de Carlinhos Vergueiro, além de contribuir com vocais em quase todo o álbum.
No ano de 2002, junto com seus irmãos Chico, Miúcha e Ana de Hollanda, além de Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Inezita Barroso e Carlinhos Vergueiro, ele fez parte da caixa de quatro discos intitulada Acerto de contas, em homenagem a Paulo Vanzolini, lançada pela gravadora Biscoito Fino. Nessa compilação, interpretou três músicas do artista homenageado: Falta de mim, Noite longa, e Mente e Morte é paz, esta última em parceria com Toquinho.
No ano de 2003, junto a Dona Ivone Lara, Wilson Moreira, Elton Medeiros, Renato Braz, Monarco, a Velha Guarda da Portela, Elza Soares, Teresa Cristina, Martnália, Nilze Carvalho, Seu Jorge e Walter Alfaiate, entre outros artistas, ele fez parte do álbum Um ser de luz – homenagem a Clara Nunes, onde apresentou a canção Derramando lágrimas.
Em 2007, lançou o espetáculo Cristina Buarque e Terreiro Grande, no Teatro Fecap, em São Paulo, com produção de Homero Ferreira.
O sentimento dos colegas de profissão
A cantora e compositora Teresa Cristina lembrou que Cristina Buarque era uma grande pesquisadora de samba e influenciou muito sua geração.
“Tenho certeza de que a Cristina era a grande responsável pelo que todo mundo passou a chamar de revitalização do samba da Lapa, porque foi através das fitas e posteriormente dos CDs que começamos a enriquecer nosso repertório. E a Cristina tinha uma vontade de esparramar esse repertório pela cidade. Uma pessoa muito importante para o samba, avessa a qualquer tipo de holofote . Ela só queria cantar o samba dela, tomar a cervejinha dela, fumar o cigarrinho dela. Foram amigas durante muito tempo e depois ela foi para Paquetá, onde passou o final da vida”.
O presidente do Instituto Memória Musical Brasileira, João Carino, conta que produziu um disco de Cristina. “Juntos fizemos o disco Ganha-se pouco, mas é divertido, cantando a obra do Wilson Batista. Ela foi uma enciclopédia da música brasileira. Cristina Buarque vai deixar muita saudade. Ela tinha um jeito único de cantar”.
Conhecido como Pratinha, o músico Tiago Prata era amigo de longa data de Cristina e tocava com a cantora no famoso Bar Bip Bip, em Copacabana.
“Cristina teve uma importância gigante para a música brasileira, para a defesa do samba, dos compositores. Ela não se rendeu aos caprichos do mercado fonográfico para poder manter acesa a chama dos compositores de samba. Ela formou toda uma geração da Lapa do início dos anos 2000 como Teresa Cristina e Pedro Miranda. É uma perda enorme.”
A cantora Alice Canto escreveu no Instagram que Cristina era a cantora, mãe, avó e a pesquisadora mais generosa e menos vaidosa que já conheceu na vida.
“Cristina era completamente avessa a homenagens e me avisou, quando quis homenageá-la em vida, pelos seus 70 anos: “E já vou avisando, não quero homenagens quando morrer!” Foi algo que nunca entendi muito: porque é que gravava discos e fazia um trabalho tão rico se não queria ser saudada por isso, se não tinha o desejo de “aparecer”, de colher os frutos. Era um trabalho muito apaixonado tanto pelos personagens daquilo que cantava, pelas histórias que os sambas contavam quanto pelas melodias, arranjos e batuques que ela amava tanto. E mesmo sendo tão especialista no assunto nunca se autoproclamou “sambista”, pois não tinha nascido “lá”, pois não era uma personagem, mas uma admiradora de fora.” (Foto: Reprodução)