Reportagem G1 – Sabe as propagandas de absorventes para menstruação que mostram o produto sendo testado com um líquido azul? Você poderia pensar que o motivo é que não seria de bom tom usar sangue em um comercial, mas a verdade é que não. A publicidade só reflete o que acontece na realidade: absorventes não são testados com sangue. O teste-padrão de toda a indústria é com água ou solução salina (mistura de água, sal e bicarbonato).
O dado é de um estudo publicado em agosto na BMJ Sexual & Reproductive Health, uma das mais influentes e conceituadas revistas sobre medicina no mundo.
A pesquisa usou, pela primeira vez, sangue nos testes e revelou que os produtos tinham uma capacidade de absorção menor do que a anunciada nos Estados Unidos. Parte das marcas também é vendida no Brasil, que sequer exige essa informação nas embalagens. Tanto lá quanto aqui os testes não precisam ser com sangue. (Ao final da reportagem, veja o que dizem as empresas.)
“Descobrimos que a rotulagem da capacidade do produto estava em desacordo com os nossos resultados – a maioria relatou capacidade maior do que a encontrada nos nossos testes. Suspeitamos que se deva a testes com líquidos sem sangue, como água ou soro fisiológico”, descreve Bethany Samuelson Bannow, pesquisadora da Oregon Health and Science University (EUA) e líder do estudo.
Por que isso importa?
A pesquisa aponta quatro razões:
1️ – Trata-se de uma questão básica de direito do consumidor: um produto é vendido sem que se saiba a sua capacidade real de absorção uma vez que o sangue é mais denso que a água e, portanto, não é absorvido de forma igual.
Além disso, na menstruação, também é liberado o endométrio, mais espesso ainda que o sangue e mais difícil de ser absorvido. Com isso, a região íntima fica úmida e passível de doenças.
2 – O sangramento excessivo é o que mais leva pessoas ao ginecologista, segundo a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia). Até há pouco tempo, um dos critérios para dizer se uma pessoa sangrava além do normal na menstruação e precisava de tratamento era a quantidade usada de absorvente e a frequência com que vazava. (Veja mais abaixo sobre o teste, que caiu em desuso.)
Em 2003, por exemplo, uma pesquisa na Europa analisou a menstruação de 226 mulheres que diziam ter hemorragia. Resultado: apenas 34%, de fato, tinham menorragia, como é chamada a condição. Ou seja, muitas passaram por tratamentos desnecessários.
3 – Os vários tipos e marcas de absorvente não seguem um padrão para indicar o volume que absorvem. Assim, os consumidores não dispõem de informações suficientes para embasar as suas escolhas de compra. Com isso, ficam mais suscetíveis ao vazamento, um dos maiores medos durante o período menstrual.
Pode parecer um receio banal para quem não menstrua, mas, certamente, não o é para as mais de 60 milhões de pessoas em idade menstrual no Brasil. Imagine você estar na escola, na rua ou no trabalho e, de repente, sua calça ficar manchada de sangue e você ter que ficar circulando assim por aí? Pois é, com certeza você se incomodaria também.
4 – Estamos em 2023 e, mesmo com o avanço de tecnologias desde que os absorventes começaram a ser produzidos há quase 100 anos e apesar das discussões sobre o espaço da mulher na sociedade, os achados da pesquisa reforçam a constatação de que a saúde da mulher ainda não é priorizada.
Para efeito de comparação sobre a disparidade de gênero na saúde, um levantamento da Universidade de Stanford publicado em julho mostrou que uma busca por “sangue menstrual” no banco de dados PubMed puxou somente cerca de 400 estudos sobre o assunto nas últimas décadas. No mesmo período, foram em torno de 10 mil pesquisas sobre disfunção erétil.
“A investigação sobre a menstruação e a saúde das mulheres em geral é, lamentavelmente, subfinanciada e subpriorizada. Nos EUA, o NIH [National Institutes of Health, ligado ao Departamento de Saúde americano], nem sequer exigia, até 1993, que as mulheres fossem incluídas em ensaios clínicos”, narra Bethany Samuelson Bannow, líder do estudo ao g1
Na pesquisa, foram analisados 21 produtos entre absorventes, coletores menstruais, calcinhas absorventes e discos. Em razão da dificuldade de se conseguir sangue menstrual para pesquisas acadêmicas, foi usado sangue de bolsas que iriam para o descarte. Esse sangue é mais próximo da menstruação do que água e solução salina.
Por que os absorventes não são testados com sangue?
A resposta é simples: não há essa exigência dos órgãos reguladores, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
A indústria americana segue uma regra estipulada por ela própria (teste com água ou soro) há mais de 40 anos, quando se viu pressionada após a morte de dezenas de mulheres.
Até então, não havia norma alguma. Os absorventes internos, por exemplo, eram vendidos sem orientação sobre de quanto em quanto tempo deveriam ser trocados.
Foram registradas centenas de casos de mulheres com choque tóxico – quando bactérias entram na corrente sanguínea e liberam toxinas. Ao menos 73 mulheres morreram por causa disso.
Referência no assunto, a pesquisadora Shara Vostral, da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, investiga a história da menstruação e escreveu um livro sobre a trajetória de luta das mulheres após o episódio. Ela contabilizou 941 casos entre 1970 e 1980.
Na época, o FDA criou uma força-tarefa para estabelecer padrões de testes nas empresas. Em 1980, foi a instituída a regra de teste com uso de solução salina ou líquido à base de água, na contramão da recomendação de entidades.
“Os defensores da saúde das mulheres na década de 1980 apresentaram provas ao FDA para a utilização de sangue heparinizado [sangue com coagulante] com base nos seus próprios testes científicos, mas os reguladores e os cientistas empresariais defenderam a solução salina porque era mais facilmente padronizada”, conta Shara Vostral, pesquisadora sobre a história da menstruação em entrevista ao g1
Venceram os fabricantes e, desde então, o FDA não voltou mais ao assunto nem fez novas exigências. Procurado pelo g1, o órgão explicou que cabe à empresa definir os meios de testagem.
Os absorventes menstruais são dispositivos que não requerem revisão antes da comercialização. E, com isso, é o fabricante que determina os métodos de teste apropriados para avaliar o desempenho dos seus dispositivos e os documenta para a regulação. Apenas no caso de absorventes internos há uma regra para o teste e ele é feito com fluido aquoso (à base de água).
E como é no Brasil?
No Brasil, os absorventes em seus vários tipos (descartável comum, interno, peça íntima, coletor e disco menstrual) não estão na lista de produtos com regras de eficácia a serem fiscalizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).
Procurada, a Anvisa explicou que “não há requisito obrigatório expresso em norma que exija a apresentação de testes de eficácia de absorção para esses produtos”. Disse que são exigidas informações sobre:
Ou seja, não existe um padrão industrial para testes de capacidade de absorvente fiscalizado no Brasil, com exceção dos internos.
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, informou não haver registros na sua base de dados de reclamações contra absorventes, mas afirmou que “eventuais constatações por parte das consumidoras em relação à qualidade devem ser registradas nos órgãos de defesa do consumidor”.
Seria possível testar com sangue?
Sim. Pesquisas com material humano, como sangue ou sangue menstrual, são permitidas no Brasil. Portanto, os fabricantes poderiam usá-lo em testes sem problema algum.
A coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Paula Midori Castelo, explica que as empresas poderiam selecionar voluntárias para testar os produtos com sangue menstrual, mas pondera que isso traria custos por ser um modelo de pesquisa mais caro que o experimento feito hoje em laboratório.
“A empresa poderia fazer um teste com voluntárias que usariam o absorvente para analisar a eficácia com sangue menstrual. Poderia também usar sangue doado como na pesquisa. Esse processo exige análise de um comitê de ética, que tem processos rigorosos. O que ocorre é que a indústria cumpre a exigência básica e, se isso não é exigido, não é feito”, conta Paula Midori Castelo, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp
Impacto na saúde
A falta de transparência nos testes de absorventes traz impactos importantes na saúde, segundo a ginecologista Andreia Nacul, membro da Comissão de Ginecologia Endocrinológica da Febrasgo.
“Fiquei impressionada com o que a pesquisa mostrou. Não saber como são testados e a capacidade de absorver coloca a saúde da mulher em risco, porque a umidade na região íntima pode causar uma candidíase, por exemplo. E também não permite que possam fazer escolhas melhores conforme a intensidade do fluxo para se protegerem de vazamentos”, explica.
Considerada ainda um tabu social, a menstruação (e os potenciais reflexos na saúde) é encarada como algo menos importante até mesmo por parte dos médicos.
Durante a produção desta reportagem, por exemplo, um dos entrevistados, que é diretor de uma instituição ligada à saúde da mulher, disse que havia discussões mais relevantes do que debater a capacidade de absorção de absorventes.
“Saber se um absorvente absorve uma [certa] quantidade não é importante. Se uma mulher usa um absorvente e ele vaza, ela compra de outro tipo ou marca no outro mês. Isso não precisa ser discutido”, afirmou.
Pobreza menstrual
No entanto, não ter a garantia de qualidade do produto faz com que seja necessário trocar o absorvente mais vezes, o que não é algo acessível para todos.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), um entre quatro adolescentes já deixou de ir à escola por estar no período menstrual e não dispor de absorventes no Brasil. A estimativa é que a falta de acesso ao item de higiene atinja 4 milhões de jovens.
O preço médio de um pacote de absorvente com oito unidades é de R$ 16. A recomendação é que o absorvente seja trocado a cada quatro horas. Com isso, uma pessoa com um ciclo de cinco dias pode ter de usar até 30 absorventes, o que equivale a um gasto mensal de R$ 64. Só neste ano, o governo federal passou a incluir a distribuição de absorventes no Sistema Único de Saúde (SUS).
Diagnóstico
Até 2018, um dos parâmetros clínicos para saber se uma pessoa tinha ou não um fluxo considerado hemorrágico e necessitava de tratamento era o teste pictorial – que usava o absorvente como parâmetro.
Como era o teste
Uma tabela com diferentes manchas de sangue no absorvente era apresentada ao paciente para indicar quantas vezes trocava o absorvente e como era a mancha de sangue.
O volume de trocas e a quantidade de sangue aparente ajudava no diagnóstico. Com isso, havia o risco de que a pessoa se classificasse como fluxo intenso, sem que, de fato, fosse.
“No teste pictorial, o que se observava era o número de absorventes que a mulher trocava e o quanto ele saía sujo. Isso atestava uma queixa da mulher de sangramento intenso, entre outras análises clínicas. Com certeza, com absorventes testados com água, pacientes poderiam superestimar o sangramento anorma”l, diz Andreia Nacul, membro da Comissão de Ginecologia Endocrinológica da Febrasgo. (Foto: Reprodução)
Reportagem Especial G1