Jornalismo ou propaganda em tempos de guerra?

A mídia empresarial ocidental e a cobertura do bombardeio em Gaza

 

Henrique Acker (correspondente internacional) –  Quando escrevia este artigo (21/10/23) o Ministério da Saúde da Autoridade Nacional Palestina (ANP) informava que 4.469 palestinos foram mortos e 14 mil estão feridos, desde o início do conflito Hamas-Israel, em 7 de outubro. De acordo com os dados, 70% dos mortos eram crianças, mulheres e idosos.

A ANP informou ainda que 44 profissionais de saúde morreram e 70 ficaram feridos, em meio a ataques a hospitais e centros de referência no atendimento a pacientes. A ONU, por sua vez, revelava que 16 de seus funcionários em Gaza foram mortos nos bombardeios.

Do lado israelense, foram confirmados 1.300 mortos e 3.300 feridos, a esmagadora maioria em 7 de outubro, dia do ataque do Hamas a comunidades e a Festa Rave no Sul de Israel.

 

Cúpula no Cairo e ajuda humanitária

No Cairo, decorria a cúpula pela paz na Faixa de Gaza, com representantes de governos do Oriente Médio, a Autoridade Nacional Palestina e países convidados, como a Alemanha, Inglaterra, Canadá, França e Espanha.

Falou-se num cessar-fogo, mas os que levantaram essa bandeira fizeram-no para que os palestinos se retirassem de Gaza. Ou seja, abandonem seu próprio território, o que favorece aos propósitos do governo de extrema-direita de Israel. Mas Mahmoud Abbas, líder da ANP, afirmou de forma categórica: “Não iremos sair, ficaremos na nossa terra”.

Na fronteira entre o Egito e Gaza entraram 20 caminhões de ajuda humanitária autorizados pelo governo israelense. Nenhum deles transportava combustível, produto essencial para manter os geradores dos hospitais, muitos com atendimento precário ou desativados.

De acordo com o porta-voz do Ministério da Saúde, em Gaza, seriam necessários sete mil caminhões para abastecer os cerca de dois milhões de moradores do território com água, alimentos e medicamentos.

 

Bombardeios ou vídeo game?

Todos os dias as cadeias de Televisão abertas de Portugal mostram imagens gravadas ou ao vivo das proximidades da fronteira de Israel com a Faixa de Gaza. É o limite de segurança admitido pelo governo israelense para a passagem de civis, inclusive jornalistas.

Assim, o máximo que o cidadão assiste no noticiário das TV são imagens de colunas de fumaça negra sobre o que resta da área construída de Gaza. Nem mesmo o som das explosões é captado. À noite ainda é possível ver o clarão dos bombardeios aéreos israelenses.

Imagens de dentro de Gaza raramente são exibidas. Mas elas existem, são feitas diariamente por repórteres cinematográficos contratados pela Agência Reuters e pela TV Al Jazeera. Seus autores são jornalistas palestinos, que prestam serviço dentro do território. A questão é: interessa à mídia empresarial ocidental mostrar o que se passa dentro de Gaza?

 

Pouca informação, dois pesos e duas medidas

Há um aspecto ainda pior na cobertura jornalística do conflito. Os debates promovidos nos estúdios raramente dão voz aos palestinos ou a fontes independentes. Isso porque as empresas de comunicação trabalham com os pressupostos difundidos por Israel, tradicional aliado dos EUA e dos principais países da União Europeia.

Por ser tratado como um grupo terrorista, todos os propósitos, o papel e as ações do Hamas são colocados sob desconfiança ou desacreditados. Em se tratando de Israel tudo é justificável. Já os EUA são apresentados como a força capaz de levar “moderação”ao conflito. Como, se é o próprio governo Biden que alimenta a máquina de guerra de Israel?

Crimes de guerra, denunciados na invasão russa da Ucrânia, como o bombardeio indiscriminado de civis, a instalações hospitalares, escolas e bairros residenciais, além de deslocamentos forçados e evacuação de hospitais, são considerados dentro do “direito” que Israel teria de responder à agressão do Hamas, visando proteger seu território e defender sua população.

A postura do governo de extrema-direita de Israel é tolerada, em seu propósito de castigar a população palestina, como uma espécie de vingança dos crimes cometidos pelo Hamas em Israel. O massacre da população palestina de Gaza é tratado como um “dano colateral”.

 

Porta-vozes disfarçados

Não há nenhum esforço para esclarecer a diferença entre antissemitismo de antissionismo, coisas completamente distintas, mas que são confundidas propositalmente pelos porta-vozes de Israel.

Os argumentos do governo israelense são repetidos cegamente pela maioria dos comentaristas. Alguns chegam a condenar até mesmo as manifestações populares que acontecem mundo afora, denunciando o cerco e o massacre à Gaza e pedindo o reconhecimento de um Estado Palestino.

Outro assunto polêmico é tratado de forma rasa nos debates nas emissoras de TV: os recursos de ajuda humanitária que chegam à Palestina alimentariam o Hamas, dizem. Quem pode afirmar isso? Que provas oferecem a esse respeito?

E os reféns em posse do Hamas? Como o governo Netanyahu está tratando deste assunto? O que dizem os familiares dos sequestrados? Essa parece outra questão de menor importância, que vai sendo deixado para trás na cobertura midiática.

Segurança nacional

Praticamente não há jornalistas ocidentais em Gaza desde 2021, quando a aviação de Israel bombardeou e derrubou a torre de 12 andares que abrigava as equipes de mídia de diversos países, inclusive da Associated Press e da Al Jazeera.

A CNN Portugal enviou repórteres a Jerusalém e Ashkelon, cidade israelense mais próxima de Gaza, mas raramente transmite imagens de dentro do território bombardeado. No entanto, há inúmeros colegas palestinos trabalhando no terreno. De acordo com a Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), 15 deles já foram mortos.

Aliás, a própria FIJ informa que “o governo israelita aprovou em 20 de Outubro um novo regulamento que permitirá o encerramento temporário de canais de notícias que “prejudiquem a segurança nacional”.

 

Isolamento de Gaza e censura em Israel

Segundo o jornal Times of Israel, “o ministro das comunicações – com o acordo do ministro da defesa – poderá ordenar aos fornecedores de televisão que parem de transmitir o meio de comunicação em questão; fechar seus escritórios em Israel, apreender seus equipamentos e encerrar seu site ou restringir o acesso ao seu site, dependendo da localização de seu servidor.”

Cabe lembrar que, por interferência técnica do próprio governo de Israel, a Faixa de Gaza só está recebendo o sinal de um único operador de internet. Duas das três linhas de comunicação móvel foram bombardeadas, o que reduziu em muito o sinal das operadoras.

“Israel tem duas razões principais para bloquear o tráfego da Internet: tornar mais difícil a comunicação do Hamas e tornar mais difícil a reportagem dos jornalistas”, disse Rex Brynen ao Jornal Expresso o investigador de Ciência Política na Universidade de McGill, no Quebec, Canadá.

 

Economia ou parcialidade?

Que fontes de informação podem ser consideradas confiáveis para a cobertura jornalística em Gaza? Elas existem? Além das precárias estruturas de governo, controladas pelo Hamas, há diversas organizações reconhecidas que atuam na área, sem quaisquer vínculos com grupos jihadistas

Podemos citar os Médicos Sem Fronteiras, ONU, Crescente Vermelho (Cruz Vermelha), Anistia Internacional e tantas outras instituições que são comumente chamadas a testemunhar as barbaridades cometidas em cenários de guerra, como na Ucrânia.

No entanto, raramente as mídias ocidentais dão voz na Palestina a essas mesmas organizações, cujos funcionários e voluntários lidam diretamente com a população de Gaza.

Mas há ainda outras fontes que poderiam ser citadas, justamente porque estão muito próximas da região do conflito. É o caso do jornal israelense Haaretz e a  cadeia de TV do Catar, Al Jazeera.

Por cumplicidade e economia, o telespectador português é bombardeado por desinformação e “achismo”, ao contrário dos mais elementares princípios do jornalismo profissional. Será que essa mesma conduta se repete na mídia empresarial mundo afora? (Fotos:  Al Jazeera  (1)  /  REUTESRS (2)/ Reprodução)

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

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