O artista, que se apresenta neste sábado (15) em Salvador, afirma que não teme possíveis abusos relacionados à inteligência artificial e revela que a perda do filho ajudou a ampliar sua visão sobre a vida: ‘Espero viver por mais alguns anos. Embora 83 anos seja uma fase avançada, não é um limite como antes’.
Numa entrevista concedida em Salvador a Maria Fortuna, de O Globo, Gilberto Gil menciona que teme a morte por ser “ainda uma experiência humana”, mas que, após isso, “acontecerá o que Deus decidir. ‘Que a vossa vontade seja feita’, como está escrito no Pai Nosso.”
Modificar os antigos modos de viver — iniciando pela própria experiência. Essa é a proposta de Gilberto Gil com “Tempo rei”, que terá sua estreia neste sábado (15) na Arena Fonte Nova, em Salvador (BA).
A última turnê do cantor e compositor de 82 anos simboliza um novo capítulo em sua trajetória, que conta com 43 anos de carreira e 60 discos lançados.
Sob a direção artística de Rafael Dragaud e a supervisão musical de Bem e José Gil, o espetáculo, que percorrerá dez cidades no Brasil, conta com uma banda composta por 16 integrantes, apresentando músicas de diversas épocas da carreira de Gil. Na sua residência em Salvador,
Confira a entrevista completa publicada no GLOBO.
A última turnê não significa o fim, né, Gil?
Não. Pelo menos na medida em que eu tenha, como tenho, uma expectativa de viver ainda mais alguns anos. Vou fazer 83 anos. É uma idade avançada, mas não é limite, como já foi. Os 80 era privilégio para gerações anteriores. A longevidade aumentou um pouco. Já a média mundial, hoje é 75 anos. E os que a gente pode almejar, ia um pouco além da média.
Inclusive a gente vive um momento sem precedentes de muitos nomes da cultura brasileira estarem vivos e em atividade aos 80 anos. Você, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque…
Sim. A medicina e a farmacologia, essas novas ciências ligadas à saúde, à dimensão sanitária, estão progredindo rapidamente. Essa extensão do limite de idade já é para uma perspectiva para um número maior de pessoas. Esperando viver um pouco mais, espero também continuar criando um pouco mais em outras proporções.
Você já experimentou tanta coisa. Recentemente fez uma ópera. Há outras linguagens e projetos que tem vontade de fazer?
Fico meio à mercê do que a vida vai solicitando. Eu e Aldo Bruzzi, meu parceiro na ópera “Amor Azul”, estamos agora desenvolvendo outra, “Ijuca Pirama”, com o Paulo Coelho escrevendo o libreto. Duas óperas em dois anos, pode ser que venham outras. A ópera nova é um estilo que está em expansão no mundo inteiro, complementando as óperas clássicas dos grandes autores europeus, americanos que formam o grande conjunto da ópera mundial. Há outras coisas, as canções populares…
Tem composto?
Experimentalmente. Em casa, com violão, experimentando novas configurações melódico-harmônicas. Mas canções mesmo, no sentido convencional, as áreas das óperas deram conta desse campo.
Está animado para a turnê? Vi você dizendo que está animado para começar porque isso também significa que vai terminar…
Isso, estou animado para as duas coisas. O combinado é levar um ano na turnê. São pelo menos 30 shows, entre Brasil e fora do Brasil, que vão nos ocupar até novembro, dezembro. Espero que estreie bem, continue indo, até a hora de dizer: “Bom, aqui acaba”.
Sua preparação mudou com a idade? Ginástica, fonoterapia, tudo isso ficou mais rigoroso?
Sim, ficou mais cuidadosa. Antigamente era mais solta assim. Havia a condição física plena, a questão vocal também, com momentos de dificuldade aqui e ali que eram superados. Fazia coisas meio ao sabor do acaso. Hoje há regras mais básicas para cuidar da condição física geral e, principalmente, da voz.
Você já disse: “Minha voz está acabada, porque eu gritei muito”. Não é o que a gente vê no palco….
É porque cuidados foram tomados no sentido de recuperar um pouco a qualidade vocal mínima necessária.
Você teve que operar cordas vocais há um tempo…
Tive que operar uma corda vocal há uns 15, 20 anos. Recuperar a “agreabilidade”, para que as pessoas ouçam e continuem achando agradável. Tudo isso requer cuidados que não eram necessários antigamente.
No dia do show, busca uma alimentação especial ou manda um sarapatel, que eu sei que você gosta, para dentro?
Como pouco no dia de cantar. No cotidiano, a ingestão de alimento já é uma coisa muito mais moderada do que foi antes. No dia do show, tenho que ingerir um pouco mais de proteína, carboidrato especial, comer uma tâmara, uma uva passa para criar força, reserva energética maior para consumir naquelas duas de palco.
Com quem faz as unhas para tocar violão?
Com a Luene, uma menina da Rocinha.
São muitos anos de carreira, 43 anos de estrada. Viveu milhões de momentos especiais ao longo dessa trajetória. Mas agora é um marco, a última turnê. Sente-se comovido, mexido?
Um pouquinho. Tento evitar um emocionalismo dominante que vá me embargar a voz na hora de cantar, atrapalhar o desempenho, a performance. Mas tem uma emoção. Tem a ver também com essa condição de admitir e adotar a finitude como um elemento integrante da vida. A morte faz parte da vida nesse sentido. Aliás, esse é um verso de uma das minhas canções. Nesse sentido, é preciso respeitar o fim. Ter respeito pelo fim das coisas.
Você sempre refletiu sobre os mistérios que hão de pintar por aí e a morte em suas músicas. Trata tudo com resiliência, a ponto de falar para a sua filha, Preta, que se tiver pesado para ela, se deixe ir. O que te fez, o que viveu, o que leu e foi fundamental para chegar nessa compreensão? Ter perdido um filho tem a ver?
Ter perdido um filho tem a ver. Ter perdido muitos amigos ainda jovens naquela época em que a AIDS devastou parte importante da juventude mundial. Mas tem a ver, principalmente, com o aprendizado através dos mestres, das filosofias, das religiões, os politeísmos, os monoteísmos no sentido mais rigoroso.
Chegou a Salvador e foi logo ver Preta no hospital. Como ela está?
Se tratando. A condição dela desde que foi diagnosticada com câncer, os tratamentos e intervenções, é um conjunto de dedicação profunda que ela tem que ter à própria saúde e apreço pela vida. Escolheu criar a solidariedade coletiva diante dela, a obrigação de dar satisfações permanentes ao público da sua condição de saúde e receber a satisfação dele. É uma quantidade imensa de pessoas que vêm falar comigo da solidariedade a ela, do desejo que se recupere. Ela se instala nesse campo de exigência individual, mas dentro dessa bacia da vida coletiva brasileira.
Hoje, você tem gurus, pessoas que te inspiram nesse campo?
Particularizadamente, não. Porque as grandes leituras em relação aos mestres chineses, japoneses, zens, iogues, indianos, além dos mestres ocidentais, da filosofia grega, da filosofia alemã, da filosofia popular aqui no Brasil, das grandes linhas mestras do politeísmo africano, o candomblé… Tudo isso foram acumulações feitas 20, 30, 40 anos atrás. Hoje, é a fruição de todos esses ensinamentos, dessas lições foram obtidas ao longo da vida. Mas continuo muito interessado. Há uma corrente agora ligada às novas formas científicas, à questão do DNA, do código genético e os impactos que isso tem trazido à saúde dos indivíduos e das coletividades. Isso me interessa, mas menos particularizadamente como já foi no passado.
Acredita em vida após a morte? O que acontece com a gente depois?
Não sei. Já quis saber, já ousei achar que poderia ser isso ou aquilo. Há várias versões dos campos religiosos que admitem o prolongamento da vida através de uma nova expansão do espírito, de uma nova corporalidade mais sutil como dizem as filosofias e as religiões orientais. Mas eu deixei de especular. Vai ser o que tiver que ser.
Continua sem medo da morte, mas com medo de morrer?
Sim. Porque morrer é um ato ainda físico, corporal, ainda é aqui, na vida, no sol, no ar. O verbo morrer ainda é um ato humano. A morte, nesse sentido dessa possível expansão infinita que vai se dar depois do último ato de morrer, isso aí não o que vai ser, vai ser o que Deus quiser. Seja feita a vossa vontade, como diz os últimos versos da Ave Maria. “Seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu”. No Padre Nosso, na Ave Maria, “rogai por nós. pecadores, agora e na hora da nossa morte”.
Quando teve insuficiência renal, sentiu-se diante da morte mais do que nunca?
Não. Me sentia diante da urgência de tratar o corpo e recapacitá-lo a viver uma vida plena. A questão de recuperar a saúde e, eventualmente, como foi possível, continuar vivendo. E tô aqui até hoje. Essa coisa da presença iminente da morte, como acontece nos acidentes graves, momento em que muitas pessoas são submetidas a essa região limítrofe entre viver e morrer, isso eu não tive. A vida não me fez passar. Espero que continue assim. Mas, se tiver que viver essa situação, que seja assim, seja feita a vontade de Deus, assim, aqui na Terra como em qualquer lugar.
Como faz para falar com Deus? Falar com Deus é estar vivo?
É, basicamente é isso. É estar vivo, é ter a fruição das linguagens, dos modos de dizer, de pensar, de fazer, de compreender, coisas que vêm através das palavras, que vêm através dos conceitos.
Então, é consciente?
É consciente. Falar com Deus é exercício consciente, permanente. Evidentemente, tem muito de fantasia, de poesia nisso tudo. Mas é, principalmente, meditação consciente.
O que está nas suas orações? O que pede?
O que tem no Padre Nosso e na Ave Maria. Especialmente esses trechos que citei: “Seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu, perdoai aos que nos devem”. Esse compromisso, desejo de solidarização permanente com o conjunto dos seres humanos. Essas coisas que resumem o sentido da palavra amor. Como amar o próximo como a si mesmo.
Você nunca teve medo da tecnologia. Inclusive, falou dela em suas músicas…
Não sou usuário radical da tecnologia, mas penso a respeito, proponho uma reflexão.
A gente está vivendo esse momento da inteligência artificial. Ressuscitaram os Beatles, que ganharam o Grammy em 2024 de melhor performance de rock. Como lida com a ideia de que a sua voz vai continuar mesmo depois que você se for? Como pensa a relação da inteligência artificial com a composição?
Não penso nisso, não. Acho que a permanência, a perenização, a eternização daquilo que a gente faz é uma coisa meio garantida por todas as formas de registro. Especialmente as mais novas que surgiram, como a inteligência artificial. É um momento áureo dessa coisa toda. A voz vai ficar, o texto reflexivo, a poesia… Através das letras de música, das conversas todas que se deram ao longo de tantos anos, com você, com seus colegas, gente da imprensa. Tudo isso está garantido. Tem um registro digital que está aí.
As pegadas todas.
Todas. Está tudo garantido.
Mas não tem receio do que possam fazer com isso?
Não. Porque, aí, não é um receio meu. Os abusos, os desmandos também estão garantidos. O ser humano vai continuar abusando, fazendo coisas absurdas. A minha obra, o meu trabalho, o meu acervo não estão imunes a nada disso. Também vai estar no meio dessa loucura toda. Não me preocupo muito com isso, não.
Como recebe a fala de que é um orixá vivo?
Eu acho bonito, respeitoso. Acho uma incorporação bonita, extraordinária, dessa coisa que podia ficar no plano de uma levitação espiritual abstrata, mas que é trazida para o campo da realidade. Os deuses são humanos, os semideuses são humanos. Somos representações vivas dessas idealizações todas que vêm naquilo que a gente chama de deuses e deusas. Os orixás pertencem a esse conjunto. Eles serem reumanizados através de representações como essas, de alguém me atribuir a dimensão de um orixá, a mim e a tantos outros colegas e amigos… É importante, é uma reincorporação da dimensão espiritual expansiva para uma coisa de reduzir tudo isso de novo a uma representação corpórea, física, humana, verdadeira, real.
É existencial, assim como falar com Deus.
É aqui, é na consciência, é agora. É agora, é através do verbo, da palavra, da linguagem. É isso. Espiritualidade é linguagem.
Ser feliz é uma opção? Está tudo traçado? Acredita em destino ou na escolha?
Não acho que seja uma coisa que a gente possa garantir. Ela será sempre uma pluralidade de momentos, de modos, de situações, de qualidades que incluem positividade, negatividade, recompensa. E, ao mesmo tempo, falta, vazio e preenchimento. A felicidade é mais uma idealização dessas tantas que a gente utiliza para criar saúde mental, espiritual, física. Felicidade é isso: melhor condição corporal, espiritual, melhor o uso da linguagem. Quanto melhor usar a linguagem, mais espiritualmente completo você pode estar.
É tão bonito como você fala, pausadamente. Vai falando ao mesmo tempo em que seu pensamento está acontecendo. Há um respeito muito grande com ele, seu com você mesmo.
Sem dúvida. No papo é que eu me safo (risos). A hora que falo é a hora que penso. Porque você pensar antes, nos seus silêncios, vazios, é uma coisa. Quando tem que comunicar, quando tem a dimensão do outro defronte de si mesmo e tem que falar para ele, é a hora que a sua palavra tem que valer alguma coisa, não é? (risos).
Olhando a expressão do outro, a gente se reconhece.
Reconhecendo a existência do outro, reconhecendo a semelhança do outro a si mesmo, o semelhante.
E quando a gente se ouve falando, tudo faz mais sentido, ou não, para nós mesmos.
Óbvio. Quando elas ecoam, quando o eco da palavra dita vem, bate na consciência, dá reconhecimento à condição vibrátil da consciência. Pode ser mais vibrante em alguns casos, menos em outros. Mas é vibrátil sempre.
Com a quantidade de transformações que viu na arte, no mundo, no comportamento, e como alguém que enfrentou a repressão de um governo autoritário, como vê esse momento político global com Trump, guerras…
Com a dificuldade que sempre existiu. O mundo sempre esteve para acabar. Só que as ameaças ficaram mais densas por causa de bombas, armas, do uso temerário de tecnologias. O fim do mundo fica mais plausível. Tem mais gente, são bilhões e bilhões de pessoas. Mais gente para mentir, para tentar falar a verdade, para comer, para respirar. Com relação aos Estados Unidos, são novas investidas daqueles que tentam a dominação, submeter o mundo aos seus desígnios, desejos, sonhos e pesadelos. Mas a enxurrada da vida vai levando tudo isso. E os aluviões vão se formando. As novas decantações no fundo dos rios e oceanos. Lá estarão fragmentos das novidades, dos sonhos, das novas visões auspiciosas do mundo. Acredito mais nisso do que no extermínio, na extinção absoluta.
Na pandemia, você me disse que estava apreensivo com o avanço das ferramentas de vigilância e controle que poderiam estimular certo fascismo sistêmico que rondava parte do mundo. Que reflexão faz agora?
Está tudo aí, dando chance aos que almejam a dominação absoluta de quem é contrário aos seus desígnios e projetos. O avanço da extrema direita, o gosto pela ideia do autoritarismo, os que apoiam a volta da ditadura. A conflagração permanente entre as forças do bem e do mal, da afirmação e da negação. No meio disso, temos que fazer escolhas. Quais valores ficaram em nosso íntimo? Como se essa deflagração fosse um oceano que a gente tem que enfrentar com o nosso nado.
Tivemos um Oscar com um filme sobre as consequências de tempos autoritários. O que significa?
Significa isso: que ainda estamos aqui. Para viver essa conflagração permanente entre as forças do bem e do mal, da afirmação e da negação. No meio disso, fazemos escolhas. E cada um de nós vai se deixando levar em função daquilo que acumulou dentro de si como valoração da vida.
E a política brasileira? Como avalia Lula no 3º mandato? Tá cortando um dobrado para governar…
E vai cortar cada vez mais. O domínio é cada vez mais pretendido por muitos indivíduos e grupos. Para onde a sociedade brasileira quer se inclinar, no sentido das novas escolhas, da formação da democracia brasileira, da tri-repartição do poder? O que gente quer fazer do poder Legislativo, Executivo do Brasil? Como autoriza o poder Judiciário a intervir, instruir, cobrar mediações mais completas e exatas? Vamos ver o que a sociedade brasileira quer… Não sei se (nas próximas eleições) vem Lula. Talvez alguém do campo que ele representa mais fortemente. Talvez a sociedade brasileira queira se inclinar por outra configuração, um centro. Penso que o que deve ser cobrado são os valores. Como eles se acumularam em nossos corações e consciências. Quais são? Valeu a educação que pai e mãe nos deram? Qual é o valor da vida? Para onde estamos indo?
Você sempre diz que a seta do tempo é para a frente…
É isso aí, não vai parar. Ela não vai parar nunca. O tempo não para, está sempre à nossa frente.
Do alto da experiência de quem passou pelo Ministério da Cultura e lidou com a dificuldade de conseguir recursos, como analisa a performance de Margareth Menezes no cargo?
Ela está lá, lutando. Conseguiu aumentar minimamente o orçamento do Ministério, através das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, o trabalho do Sérgio Ricardo… Tem cada vez mais dificuldades, por outro lado, né? Porque o atendimento é cada vez maior, a repercussão do trabalho da instituição cultural dentro da institucionalidade governamental como um todo é uma coisa cada vez mais difícil de ser obtida. Como a instituição cultural é respeitada no Congresso, o conjunto de ministérios, no poder executivo… Tudo isso é muita dificuldade para uma pessoa como ela. Mas ela está lá, está lá, segurando a peteca, levando adiante o legado.
Você muitas vezes exprimiu a sua observação dos ciclos de mudança que ocorreram no mundo como sendo naturais. Conflito entre países, grandes mudanças de costumes e mentalidades, ciclos que se repetem. Mas a gente não tinha chegado a um esgotamento de recursos naturais do tamanho em que chegamos. A natureza talvez nunca tenha reclamado tanto. Enchentes, secas extremas, calor insano. Ainda pensa da mesma maneira?
A natureza hoje reclama mais em uníssono conosco. Com a nossa forma de reclamar. Porque a gente passou a entender um pouco melhor os sinais da natureza, que dá sinais mais nítidos de que temos complicado nossa relação de intervenção nela. Através do industrialismo e do colonialismo exacerbado, de um capitalismo selvagem, mal informado. Tudo isso faz com que a gente hoje reclame mais em uníssono com a natureza. A natureza reclama de volta. A estamos começando a refletir o discurso natural. Ela está fazendo o seu discurso, e a gente está ouvindo e escutando com mais atenção. Isso é diferente, e renova um pouco as nossas esperanças, eu acho.
Acha que temos tempo de mudar?
Acho que vamos ter tempo Que vamos criando o tempo. O ser humano é bom nas emergências, quando é instado por elas… É, talvez, o animal mais ágil, nesse sentido, com mais agilidade para agir. Espero que, agora, faça o melhor uso possível da sua capacidade mais ágil. Acredito nisso.
O Brasil vive um momento de maior valorização de nossas raízes africanas, algo que você sempre reivindicou. Como analisa isso? E o que achou da fala de Carlinhos Brown sobre não existir raça e sermos todos da “raça humana”?
É raça humana no sentido mais específico da racialidade. O horizonte é mestiço, é mestiçagem, é mistura. Ao mesmo tempo, há resíduos raciais negros, brancos, amarelos e os lugares de privilégio que cada um ocupa. O lugar de compartilhamento que cada um precisa ter de uma forma mais adequada, mais justa, mais equilibrada. E, nesse sentido, a afirmação das racialidades parciais, como o Ilê Aiyê faz ao dizer “aqui saem os pretos, aqui nesse bloco andam pelas ruas os pretos”. É para mostrar a especificidade, a contribuição específica que eles dão à vida cultural do seu coletivo. É muito grande, ampla, vasta, imensa e esparramada por vários lugares. Então, é a mestiçagem no horizonte com respeito às racialidades específicas. Enfim, aquém do horizonte… Ao mesmo tempo (que acontece a valorização), há a contradição. Vivemos mais manifestações racistas contra negros. Em vários lugares do mundo. É o que falamos antes: a confrontação permanente desses positivos e negativos. Mas o fortalecimento, sem dúvida, de uma sociedade mais consciente mundialmente das suas conquistas e da necessidade de conquistar mais.
E a ABL, você curte mesmo frequentar, não é? O que te trouxe de mais legal?
Curto, gosto. Somos nós, os velhinhos. O convívio com a turma. Os setentões, oitentões. Os mais novos são pessoas de 70 e poucos anos. Os mais velhos já estão nos noventa e tantos. Foram pessoas que viveram acumulações interessantíssimas nos campos de atividade que tiveram, intelectual, artística, filosófica.
Há muito o que trocar…
É, muita troca ali. E o que nos cobram é muito pouco. É estarmos juntos, participar de algumas atividades que se expandem para o resto da sociedade, com as palestras, com os seminários, com as publicações de revistas, as publicações de obras particulares da ABL. É um lugar que respeito muito. Sei que tem muitos como eu que não se identificam. Sou um dos que me identifico mais. É uma instituição respeitável que a gente tem que continuar minimamente apoiando.
Oito filhos, doze netos, duas bisnetas. É um senhor legado. Está feliz com a sua gente?
Estou. Dentro daquela condição possível de felicidade que a gente já discutiu aqui. E de construírem esse novo mundo que a gente sonhou, que esperamos que continuem sonhando.
E dentro dessa perspectiva, está de boa?
Estou de boa.
(*) Reportagem: Maria Fortuna / O Globo
(Foto: Gilberto Gil / Divulgação)