Os juristas Lenio Luiz Streck e Carol Proner escreveram, a quatro mãos, artigo analisando o golpe contra a ex-presidente e um editorial do jornal O Globo defendendo o impeachment de Dilma Rouseef.
O texto alerta os democratas brasileiros a ficarem atentos contra “ uma tese antijurídica pela qual se dispensa a comprovação do crime de responsabilidade ou qualquer outra conduta prevista na Lei do Impeachment, transformando o Instituto em instrumento de deposição de governantes, como se estivéssemos no parlamentarismo. Perigo à vista”, dizem os dois juritas.
Leiam a íntegra do artigo:
Por Carol Proner e Lenio Luiz Streck (*) – Em editorial de 29.08.2023, o jornal O Globo faz veemente defesa do processo de impeachment que derrubou Dilma Rousseff da presidência da República em 2016. O mote foi a declaração do presidente Lula de que a cassação “foi leviana” e que deveria haver uma peças de reposição à Dilma.
Diz o jornal que “não cabe a ninguém tentar reescrever a história do impeachment” e que “ao questionar a legalidade da deposição de Dilma, o PT põe em xeque suas próprias credenciais democráticas”.
Cabem algumas observações ao editorial. Em primeiro lugar, olhando pelo espelho retrovisor da história, não parece que o conceito de democracia seja matéria de grandeza no jornal, principalmente se pensarmos no golpe de 1964 e na defesa, praticamente até o fim, da operação conhecida como lava jato, que tisnou gravemente o Estado Democrático.
Segundo, de tudo o que se compreendeu até hoje, quem sustenta a legalidade do impeachment contra Dilma é que tenta reescrever a história. Nela já está escrito que foi golpe, como também já está sacramentado o nefasto papel da operação lava jato, ovo da serpente do 8 de janeiro. Fatos históricos, pois.
É espantoso que o jornal afirme que o arquivamento da ação de improbidade contra Dilma feita pelo TRF-1 nada significa. E na sequência caia em contradição, ao afirmar que, mesmo que Dilma estivesse respondendo a um processo criminoso pelas pedaladas e fosse absolvida, isso em nada mudaria sua situação em relação ao veredito do Senado, porque “os processos de impeachment têm natureza política” e que “O objetivo da deposição do governante não é puni-lo, mas tão somente proteger o Estado da má gestão”.
Ou seja, qualquer ação que fosse proposta contra Dilma e ela fosse absolvida, isso nada quereria dizer por que já fora julgada politicamente. Para o jornal, o político se sobrepõe ao jurídico. Com isso, pavimentam futuras interpretações, pelas quais transforma o impeachment na fábula do lobo e do cordeiro: é irrelevante o que diz o cordeiro. O objetivo do lobo não é provar algo contra o cordeiro; quer apenas devorá-lo.
Ora, rios de já tinta foram gastos para dizer que o impeachment não é um instrumento meramente político e que, se fosse, transformaria o sistema presidencialista em parlamentarista.
Mas para O Globo o julgamento via impeachment é político. O jurídico é irrelevante. O problema na tese do editorial é que, assim, cria-se a exigência de uma prova do demônio, uma ordália pós-moderna: de nada vale ser absolvida de ação de improbidade ou de qualquer outra ação. Basta que o Senado condene. Mas, então, qual é o sentido do Estado Democrático de Direito? A resposta do jornal é taxativa: “o objetivo da deposição do governante não é puni-lo, mas tão somente proteger o Estado da má gestão”. Isto é uma confissão de que o impeachment foi visto tão somente por causa do presidente. Afinal, acusação de má gestão é crime?
Aliás, já se sabia que “o objetivo da deposição não era o de punir”, mas, sim, a de tirar Dilma do cargo. Ao negar, paradoxalmente o editorial apenas ratifica a tese do golpe. Traição das palavras.
Também já se soube – e já hoje não há dúvida – de que não houve fraude fiscal, que não houve prova de crime de responsabilidade e que não houve prova de causalidade entre crise econômica, decretos de crédito e Plano Safra.
Contudo, para além disso, o que há de mais perigoso nesta esgrimida no Editorial é a ratificação, sem qualquer pudor, da tese de que o impeachment é um instrumento estrita e meramente político, o que o transforma, como já se viu, em fator de desestabilização e deposição de governantes com dispensa da legalidade. O editorial chega a dizer que era irrelevante provar se havia pedaladas e que o que importava, mesmo, é o que o Senado decidiu.
Do limão, façamos uma limonada. O editorial deve servir de alerta aos democratas. Um dos três maiores jornais do Brasil sacramenta oficialmente uma tese antijurídica pela qual se dispensa a comprovação do crime de responsabilidade ou qualquer outra conduta prevista na Lei do Impeachment, transformando o Instituto em instrumento de deposição de governantes, como se estivéssemos no parlamentarismo. Perigo à vista.
Sabemos muito bem até onde nos leva esse tipo de “hermenêutica do curupira”, bastando lembrar o art. 142 da CF, que serviu de fermento para a tentativa de golpe há poucos meses. Ali, a torta leitura feita por algumas juristas alçava as Forças Armadas a guardiães da democracia. Deu no que deu. (Foto: Montagem/Reprodução)
* Lenio Luiz Streck é doutor em direito, professor e advogado; Carol Proner é doutora em direito, professora e membro da ABJD.