A drástica alteração nas tarifas promovida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, pode desestabilizar as “cadeias globais de valor“, que representam a organização industrial na era da globalização. Especialistas apontam que a postura dos Estados Unidos poderá acelerar transformações já impulsionadas pela pandemia de Covid-19 e pelo conflito entre Rússia e Ucrânia, em que conceitos como “nearshoring“ (transferência de partes da cadeia para nações vizinhas) e “friendshoring“ (transferência para nações amigas) ganharam destaque. Contudo, é complicado prever quais serão as novas dinâmicas que surgirão a partir disso.
Especialistas têm destacado a grande indefinição em torno da nova abordagem econômica da Casa Branca. No que diz respeito às cadeias globais de produção, a habilidade de colaboração entre outras nações e o surgimento de novas estruturas de multinacionais, especialmente na China e no Sudeste Asiático, representam aspectos a serem monitorados nos próximos tempos.
— Mais relevante do que as ações dos países em relação aos EUA, é o que eles farão entre si. Até há pouco, a União Europeia (UE) seguia a postura dos americanos frente à China. Será possível retomar diálogos mais multilaterais, sem a presença dos EUA? — indaga a professora Marta Castilho, que coordena o Grupo de Indústria e Competitividade (GIC) do Instituto de Economia da UFRJ.
Padrão difuso
O conceito de cadeias globais é caracterizado pela dispersão da produção de componentes e etapas de fabricação por diferentes nações, sob a supervisão de uma empresa multinacional que gerencia a tecnologia e o desenvolvimento. Com o objetivo de aumentar a eficiência e reduzir despesas, os países se especializam em segmentos específicos da cadeia, em vez de se concentrarem em produtos inteiros.
De acordo com o economista Otaviano Canuto, que foi vice-presidente do Banco Mundial e atualmente é pesquisador no Centro de Políticas para o Novo Sul, o modelo progrediu na década de 1990, quando “1 bilhão” de trabalhadores passaram a integrar a economia de mercado, impulsionados pelo fim da Guerra Fria e pela abertura da China, além dos avanços nas tecnologias da informação e novas fases de liberalização comercial.
Ainda sob as consequências da crise financeira mundial de 2008, a fusão das cadeias produtivas globais atingiu seu ponto máximo na primeira metade da década anterior e, a partir daí, parece ter estacionado em seu crescimento, afirmou Fernando José Ribeiro, coordenador de Estudos em Comércio Internacional do Ipea, com base na utilização de insumos importados pela indústria.
Até o meio da década de 2010, o valor agregado nas exportações de produtos manufaturados de diversos países aumentou, de acordo com informações da OCDE, uma entidade que congrega nações desenvolvidas. Nos Estados Unidos, houve um crescimento superior a três vezes entre 1995 e 2011, que corresponde ao pico da série histórica da OCDE. Na União Europeia, o aumento foi ligeiramente superior a seis vezes, enquanto na China o crescimento alcançou 22 vezes nesse intervalo.
Nos últimos dez anos, no entanto, o indicador permaneceu estável ou apresentou um crescimento modestíssimo. De acordo com Ribeiro, pesquisas indicam que houve um aumento na regionalização do comércio global. A China intensificou suas relações comerciais com países vizinhos na Ásia, enquanto os Estados Unidos expandiram suas trocas comerciais com o Canadá e o México.
— Foi uma consequência bastante natural da reestruturação das companhias. O processo anterior de cadeias globais chegou ao seu limite, e as empresas notaram que era mais vantajoso fortalecer as conexões regionais — afirmou Ribeiro.
Segundo o pesquisador, a disputa comercial com a China que começou no primeiro mandato de Trump, juntamente com a pandemia e o conflito entre Rússia e Ucrânia, intensificou essa dinâmica. Marta, da UFRJ, destacou que as barreiras logísticas e geopolíticas — incluindo as sanções ao petróleo russo e a interrupção das exportações de fertilizantes da Ucrânia — trouxeram uma “nova perspectiva” sobre setores e insumos tidos como essenciais e estratégicos.
Mercado dos Estados Unidos
De acordo com Canuto, essas ideias emergiram nas falas dos políticos, mas, na realidade, as corporações multinacionais apenas realizaram pequenas adaptações na distribuição geográfica de suas operações ou na quantidade de seus estoques. Atualmente, a nova abordagem sugerida por Trump possui um alcance que pode gerar transformações mais significativas.
— O aumento das tarifas afeta de maneira direta as cadeias de valor que servem ao mercado dos Estados Unidos — afirmou Canuto.
No curto prazo, o que se espera não é a criação de novas fábricas, mas sim um aumento nos custos, que será refletido nos preços e exercerá pressão sobre a inflação, afirmou o economista. Além disso, mesmo que as cadeias produtivas sejam ajustadas para se aproximar dos EUA, os custos continuarão elevados, uma vez que não há sobra de capacidade na economia, especialmente no setor de trabalho.
Canuto e Marta, da UFRJ, destacaram que o setor industrial que Trump deseja revitalizar já não está presente. Devido aos avanços tecnológicos, as funções de trabalho sofreram mudanças e a quantidade de empregos é menor.
As empresas multinacionais chinesas, especialmente as dedicadas à produção de veículos elétricos, têm expandido suas operações utilizando modelos “verticalizados“, o que lhes proporciona um controle mais eficaz sobre o desenvolvimento tecnológico e a produção de componentes fundamentais, como as baterias, destacou Ribeiro, do Ipea. (Foto: Reprodução)