Senado vota nesta quarta projeto que abre caminho para comercialização de sangue humano

Projeto altera a Constituição e permite que o setor privado explore o plasma do sangue humano para fins comerciais. Entidades da sociedade civil se posicionam contra a iniciativa

 

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal deve votar nesta quarta-feira (4) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022. A proposta de autoria majoritária do centrão e de setores da direita pode abrir caminho para a comercialização de sangue humano. O texto é do senador Nelsinho Trad (PSD-MS) e recebeu relatório favorável da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), além de um voto em separado do senador Marcelo Castro (MDB-PI), pelo qual não se permite a comercialização. A reunião está marcada para as 10h.

Na prática, o texto permite que a iniciativa privada utilize a coleta e o processamento de plasma sanguíneo com fins comerciais. Pela Constituição, uma mesma lei deve tratar de temas como remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas e coleta de sangue e derivados para fins de transplante, pesquisa e tratamento. O texto em vigor veda expressamente a comercialização desses produtos.

O projeto é alvo de críticas de diferentes setores da sociedade. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), por exemplo, divulgou nesta terça-feira (3) posicionamento contrário à proposta. “Plasma e sangue não podem ser mercadorias. A doação voluntária de sangue no Brasil garante, além de rigorosa segurança para as transfusões, acesso igualitário para pacientes do SUS e da rede privada”, afirma.

De fato, o monopólio estatal desse tipo de procedimento de saúde garante que ricos e pobres tenham acesso a tratamentos de forma igualitária. O plasma, por exemplo, é muito utilizado em pacientes que passam por procedimentos como quimioterapias que afetam a produção de plaquetas. “A permissão de incentivos financeiros ou de compensações na coleta de sangue ou plasma desestruturaria a política nacional de sangue”, prossegue o Conselho.

“Hoje, o Brasil é uma referência mundial nessa área pela qualidade e capacidade de atender todas as pessoas. A comercialização do plasma pode trazer de volta o cenário vivido na década de 1980, quando pessoas mais pobres vendiam sangue por valores irrisórios e com controles precários em relação à contaminação de doenças como HIV e hepatite”, finaliza a entidade.

O sangue humano

A Frente pela Vida, que reúne diversas entidades da sociedade civil ligadas à Saúde, também manifestou preocupação sobre o tema. Eles apontam a incompatibilidade da matéria com a própria Constituição. “Ao autorizar a comercialização de sangue humano, abrem uma janela à comercialização de tecidos humanos, algo proibido na Constituição Cidadã de 1988. Em um tempo passado e sombrio, a crise econômica, desemprego e fome, fazia com que pessoas em absoluto estado de pobreza, vendessem o sangue para aplacar a miséria econômica, reforçando uma outra miséria, a humana.”

A PEC altera o parágrafo 4 do artigo 199 da Constituição. Hoje, o texto legal garante que órgãos, tecidos ou qualquer componente do corpo humano não serão alvos de comércio. Assim afirma o texto: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.”

Contudo, a PEC altera este dispositivo. Caso aprovada, a proposta acrescentaria um parágrafo quinto, com texto positivado da seguinte forma: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde”.

 

Sangue não pode ser comercializado de modo algum, defende ministra da Saúde

Na semana passada, em uma coletiva de imprensa, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, expressou sua preocupação com uma PEC que poderia autorizar o processamento de plasma humano por empresas privadas. A ministra enfatizou o compromisso do governo em evitar que o sangue humano se torne uma mercadoria. “Existe uma PEC de comercialização do plasma. O plasma é fundamental para o desenvolvimento de produtos que são usados para tratamentos de doenças importantíssimas. Mas o sangue não pode ser comercializado de modo algum, não pode haver compensação aos doadores e isso foi uma conquista de nossa Constituição”, afirmou a ministra.

Ela lembrou ainda que a Carta Magna proíbe a comercialização de sangue, assim como de órgãos e tecidos humanos. Nísia Trindade ressaltou que, atualmente, a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) já trabalha no desenvolvimento de insumos derivados do sangue. Segundo ela, a instituição passa a entregar este ano, por exemplo, o fator 8 para tratamento de pessoas com hemofilia.

“E, em 2025, [a Hemobrás] fará a entrega de outros produtos derivados do plasma. Estamos trabalhando para que o sangue não seja uma mercadoria”, concluiu a ministra da Saúde.

 

Senadora alerta para riscos do comércio de sangue e plasma humano

O tema tem mobilizado o Senado às vésperas de ser apreciado na CCJ. A senadora Zenaide Maia (PSD-RN) foi à tribuna do plenário para criticar a PEC 10/2022, que autoriza a comercialização de sangue e seus derivados por empresas privadas no Brasil. A parlamentar alertou sobre as implicações éticas e os riscos para a saúde dos brasileiros, como o impacto negativo nos bancos de sangue públicos.

Zenaide destacou que a proposta contraria critérios da saúde pública e enfatizou que o corpo humano não deve ser tratado como mercadoria. “Essa desculpa de que o plasma está sendo descartado, a gente sabe que há um interesse econômico muito grande e forte por trás disso. Isso é muito grave. O plasma é também uma matéria-prima para as indústrias que obtêm o seu processamento de subprodutos […] Essas imunoglobulinas e albuminas são produtos caríssimos”, disse.

Na avaliação de Zenaide, que é médica infectologista, a venda do plasma humano pode impactar negativamente os estoques nos bancos de sangue públicos, prejudicando hospitais e serviços de saúde. Ela ressaltou ainda a importância da doação voluntária e solidária, que tem salvado vidas ao longo dos anos. “A possibilidade dessa venda do sangue terá o efeito de diminuir os estoques nos bancos públicos. As pessoas que vão fazer a coleta do plasma provavelmente não vão fazer a doação de sangue […] Se o plasma for pago, é claro que as pessoas vão ver o seguinte: ‘Eu vou doar o meu sangue, e alguém vai faturar altíssimo, as empresas privadas, em cima do meu sangue’, e com certeza vão recuar”, destacou.

(Foto: Girlene Medeiros)

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