“São pessoas querendo te calar”, diz caminhoneiro fichado pela Abin em 2020

Líderes caminhoneiros fichados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em abril de 2020, conforme revela um documento obtido pela reportagem – e divulgado pela Agência de notícias Pública, falaram em “tristeza”, “erro” e “autoritarismo” em referência a vigilância do governo Bolsonaro, durante entrevistas concedidas à revista.

O relatório, reproduzido ontem, 25, pelo Opinião em Pauta,  integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin, de março a junho de 2020.

Em 16 de abrirl de 2020, sob a direção de Alexandre Ramagem, então diretor do órgão, a Abin produziu um documento de três páginas intitulado “Painel de Monitoramento dos Transportadores Autônomos de Cargas”. O relatório é um fichamento de oito lideranças caminhoneiras no país, com fotos, nomes e apelidos, além dos seus estados de atuação e os níveis de “ameaça” que cada um deles representaria ao governo.

Wallace Landim, o Chorão, de Goiás, um dos principais líderes da greve dos caminhoneiros que parou o país durante o governo de Michel Temer em maio de 2018, disse que desconfiava sobre monitoramento enquanto travava conversas com integrantes do governo Bolsonaro em 2020.

“As pessoas que não concordavam ou que batiam de frente tinham um certo diferenciamento. […] Eu sou uma pessoa que sempre luta pelo setor do transporte, principalmente pelos transportadores autônomos. Eu vejo uma notícia dessa [documento da Abin] com muita tristeza. Porque são pessoas, do governo, da Abin, querendo, de certa parte, como eu posso dizer, querendo te calar.”

Chorão disse que não fazia manifestações “nem a favor nem contra o governo”. “Eu sou uma pessoa que luta pelo sistema de transporte. […] Quanto tinha alguma coisa certa, eu elogiava, quando tinha coisa errada, eu criticava. […] Eu sempre tive esse posicionamento, é lutar pelo transporte. Então essas pautas ideológicas aí, querer derrubar governo, não é nosso objetivo, não é objetivo dos caminhoneiros.”

O líder caminhoneiro contou que “uma das pautas que o governo [Bolsonaro] prometeu foi justamente acabar com a PPI [sistema de reajuste de preços da Petrobras], e ele não cumpriu”, assim como “fomentar as indústrias, fomentar o agro, isso não aconteceu, não aconteceu nada”.

“Eu fico triste de saber que era alvo [da Abin] porque eu sempre tive o posicionamento voltado para o crescimento do país, voltado para o segmento do transporte.”

Chorão disse que percebia “movimentos estranhos” perto de sua casa e recados em tom de ameaça. Disse que chegou a falar sobre suas suspeitas ao então ministro da Infraestrutura, hoje governador de São Paulo pelo PL, Tarcísio de Freitas.

Ramagem e Bolsonaro, espionando a vida de caminhoneiros (Foto Carolina Antunes/PR))

“Várias vezes [movimentos estranhos]. O pessoal falava que passava carro, principalmente perto de minha casa, ‘olha, passou uma camionete perto de sua casa, tirou foto’. Uma vez até comentei com o ministro [da Infraestrutura] Tarcísio, na época, hoje governador de São Paulo. Eu disse ‘governador [ministro], eu tô achando que tem algo de estranho, tem uns números [de telefone] de fora do país.’ Tinha questão de ameaça, recado de ‘olha o que você está falando, pare de bater no governo’. Eu nunca bati no governo [Bolsonaro]. Algumas vezes a gente recebia ligação. Então está aí a resposta, a resposta veio dois anos depois. Agora a gente sabe que a Abin estava investigando.”

Chorão disse que, depois de 2018, não participou de nenhuma paralisação. Ele contou que, em 2020, iniciou-se uma articulação com vistas a uma paralisação, mas a ideia foi abandonada porque várias decisões judiciais, inclusive solicitadas pela AGU (Advocacia Geral da União) do governo federal, impunham pesadas multas às entidades caminhoneiras antes mesmo que as paralisações começassem.

“A gente de fato ia fazer um movimento em prol dos transportadores e contra a PPI. Mas eu recebi 19 liminares. Nunca aconteceu isso. A própria AGU dava [obtinha] as liminares antes de acontecer. A paralisação não ocorreu. Eu recebi 19 liminares, transportadores autônomos, uma liminar de R$ 1 milhão, como é que faz? E aí quando manifestação pró-Bolsonaro, ninguém recebeu liminar nenhuma. Isso também eu questionei. Quando é pra reivindicar os direitos do segmento, aí a gente recebe liminar. Quando é pró-governo, ninguém recebeu liminar nenhuma nem a AGU colocou o posicionamento dela.”

 

 

“Governo com viés autoritário”, diz líder

A existência de um relatório com o nível de “ameaça” que líderes do movimento caminhoneiro no Brasil representariam ao governo Bolsonaro não surpreendeu parte das vítimas, ouvidas pela Pública.

O fichamento de oito lideranças caminhoneiras no país contém fotos, nomes e apelidos, além dos seus estados de atuação e os níveis de “ameaça” que cada um deles representaria ao governo.

Ao lado das fotos dos caminhoneiros há qualificações separadas entre “alta”, “média” e “baixa” sobre atividades das lideranças. A avaliação inclui supostos níveis de “ameaça” que elas representariam, comparando-os a um semáforo de trânsito – sendo verde, o nível mínimo, amarelo, o intermediário, e vermelho o grau máximo de alerta.

“Infelizmente essa história não me surpreende nem um pouco, porque combina com o perfil de um governo com viés autoritário, como era naquela época”, disse à reportagem Carlos Alberto Dahmer, o Litti, atual diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL). Ele relatou ainda que suspeita, “desde sempre”, que seu telefone seja “grampeado”.

Segundo Carlos Litti, líder caminhoneiro no Rio Grande do Sul, “com exceção do âmbito da política” não havia perseguições do governo Bolsonaro contra ele e as organizações com as quais tem ligação.

“Nunca fui diretamente ameaçado, mas sempre tive a percepção que viriam retaliações, porque, a nosso ver, o governo [Bolsonaro] não teve nem uma ação benéfica para a nossa categoria”, afirma Litti.  (Fotos:  Sebastião Moreira-EFE / Carolina Antunes/PR)

 

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