O Novo Ensino Médio (NEM) tem sido objeto de críticas e polêmicas desde a sua publicação em 2016 (Medida Provisória 746/16). Na última quarta-feira (15) o assunto ganhou ainda mais espaço na mídia com protestos, em, pelo menos, 55 cidades brasileiras. Foram cerca de 150 mil estudantes nas ruas, com adesão de professores, educadores, movimentos sindicais e outras organizações manifestando pela revogação desta medida, que é uma herança do ex-presidente Michel Temer (MDB), sancionada no governo Jair Bolsonaro (PL) e, se não invalidada, será executada na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os principais gritos de ordem foram “Revoga a reforma ou paramos o Brasil”, “De tanto poupar educação, ficaremos ricos de ignorância” e “Novo Ensino Médio = apartheid educacional”. A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), responsável pela organização do movimento, comemorou a manifestação da semana passada, considerada a maior já realizada desde 2016, e já avalia uma ainda mais expressiva no fim deste mês de março (28/03).
“O ato foi um marco da posição dos estudantes em relação à reforma do ensino médio. Essa reforma não conta com a nossa participação, com a voz efetiva da sociedade, do povo brasileiro, principalmente das pessoas que estão dentro da escola pública. Ela tem que ser revogada. E, após a revogação é necessário que o governo receba os estudantes, professores e profissionais da educação pra poder formular e concretizar um modelo de ensino que faça sentido pra nossa geração. Nós estamos dispostos a ocupar ainda mais as ruas, as assembleias legislativas e, principalmente, levar isso ao Congresso pra que seja apresentado um novo modelo de ensino, que faça sentido, e que seja condizente com a realidade dos estudantes da escola pública”, disse a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Jade Beatriz.
A reforma curricular do ensino médio, ou simplesmente o “Novo Ensino Médio”, estabeleceu uma estrutura curricular que elimina as disciplinas escolares a partir do 2º ano do Ensino Médio, substituindo-as por itinerários formativos que seriam, em tese, escolhidos pelos estudantes. O objetivo apresentado foi de flexibilizar o currículo, oferecer aos alunos uma formação mais direcionada às suas áreas de interesse, além de ampliar a educação em tempo integral. No entanto, sua implementação enfrenta desafios estruturais, resistência e desconhecimento por parte da população.
Entidades e pesquisadores da área da educação críticos a proposta acrescentam que, na prática, o que ocorre é uma grande falta de clareza em relação aos objetivos da reforma e um projeto sem debate público e sem ouvir nem educadores, nem estudantes. Para eles essa reforma curricular aprofunda a desigualdade na área educacional, favorece as redes privadas de ensino e estabelece um modelo de ensino menos reflexivo e precarizado a atividade docente. Eles defendem a urgente revogação desta Lei de 2017 que estabeleceu o NEM e sugerem a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio publicadas em 2012.
Também existe um grupo, maioritariamente ligado às instituições privadas de ensino, que, contrapondo à proposta de revogação, alega que seria suficiente “reformar a reforma”, ou seja, rever alguns pontos e fazer alguns ajustes. O Ministério da Educação (MEC) que assumiu no Governo Lula se mostra favorável a essa última perspectiva. O ministro Camilo Santana, inclusive, já de início, descartou a possibilidade de revogação e sinalizou que o único resultado para o debate é a “revisão”.
Neste sentido, o MEC publicou, no inicio deste mês de março, uma portaria para abrir uma consulta pública para avaliar e reestruturar o Novo Ensino Médio. Segundo nota encaminhada pela Pasta à reportagem do Opinião em Pauta, o objetivo do governo federal é “abrir o diálogo com a sociedade civil, a comunidade escolar, os profissionais do magistério, as equipes técnicas dos sistemas de ensino, os estudantes, os pesquisadores e os especialistas do campo da educação para a coleta de subsídios para a tomada de decisão” em relação ao novo modelo. “Além disso, o MEC irá recompor o Fórum Nacional de Educação, reintegrando entidades e movimentos populares a esse importante debate sobre o futuro da nossa educação”, completa a nota.
A consulta pública será coordenada pelo MEC, por meio da Secretaria de Articulação Intersetorial e do Sistemas de Ensino (Sase). A consulta tem prazo de 90 dias para as manifestações, com possibilidade de prorrogação. Ela será implementada por meio de audiências públicas, oficinas de trabalho, seminários e pesquisas nacionais com estudantes, professores e gestores escolares sobre a experiência de implementação do novo ensino médio nos 26 estados e Distrito Federal.
Para especialistas, Novo Ensino Médio aumenta desigualdade educacional
Para especialistas ouvidos pelo Opinião em Pauta, não há condições de um diálogo amplo e democrático, sem a urgente revogação da medida. Esta é a posição de Fernando Cássio, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), professor e atual presidente da Associação de Docentes da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Nós estamos vendo e já temos pesquisas que mostram o quanto a reforma aprofunda as desigualdades educacionais no País. E este efeito de amplificação de desigualdades de condição de escolaridade, não é colateral. Ou seja, não é que a reforma está tendo problemas de má implementação. O que estamos vendo é que este é um efeito da própria concepção da reforma”, disse o professor, completando que o NEM não é passível de aprimoramento.
“Não tem ajuste possível para uma reforma que faz 54 alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Então, a defesa da revogação é a defesa da gente disparar um movimento nacional para construir um outro modelo de ensino médio. A revogação é o primeiro passo.”
Para o professor a estratégia da consulta pública é mais uma forma do MEC ganhar tempo e desmobilizar o debate nacional. “É preciso dizer que o ministro Camilo Santana é ideologicamente favorável à manutenção da reforma. Sempre foi. Uma boa parte do lobby, desde a assinatura da MP 746/16, pelo Michel Temer, que depois virou a Lei da Reforma do Ensino Médio, foi apoiada por fundações empresariais, institutos empresariais, que o Camilo tem fortes relações. Na verdade, esse movimento do Ministério da Educação de criar uma consulta pública para coletar as informações, é mais para ganhar tempo no debate político do que, propriamente, para fazer algo de concreto com a reforma”, explica.
“A reforma estabelece uma série de parâmetros que as redes têm que fazer, que já tá tudo preconizado na Lei. Não existe modificação possível e o Camilo já declarou a imprensa que a revogação está fora de questão. Então, com essa declaração, o único resultado possível para essa consulta é fazer aquilo que ele quer fazer que, em tese, é promover uma revisão de um texto que não tem ajuste. As entidades que apoiam a revogação da reforma, e são muitas, há uma carta aberta com mais de 300 assinaturas, têm conhecimento desta tragédia, que esta reforma não tem como funcionar. Ela é uma reforma que simplifica o currículo dos estudantes mais pobres, que aumenta as distâncias entre ricos e pobres. E não é só entre a escola privada e a escola pública, porque as distâncias sempre foram enormes. Mas ela cria outros mecanismos de estratificação social dentro das redes públicas. E tudo isso está sendo colocado por esse governo que se elegeu com uma agenda de reconstituição de direitos. Por que dar continuidade a uma política que já se sabe que aumenta a desigualdade?, questiona Fernando Cássio.
Também apoiador da revogação do Novo Ensino Médio, o cientista político e pesquisador da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara, afirma que a consulta pública do MEC não deixa a agenda aberta para discussão. “Ela restringe a participação a um cronograma muito apertado e, simplesmente, a questões de implementação da reforma, sendo que a demanda dos estudantes e dos professores é a revogação. O que a reforma tem gerado de desorganização das redes, de desestruturação curricular e de baixíssima formação dos estudantes é algo que precisa ser, de fato, denunciado”, criticou.
O educador ainda falou sobre a gravidade de o governo prosseguir com a revisão do Exame Nacional do Ensino Médio à luz da reforma em vigor. O ministro da educação afirmou que há mudanças previstas no Enem e que elas devem ser adotadas em 2024. “Para que o Enem seja realizado em 2024, ele tem que ser elaborado esse ano. Se o exame for feito com base no Novo Ensino Médio, o caos da reforma se tornará irreversível”, criticou, ao defender que o MEC proponha uma alteração de datas ao exame. “É preciso pressionar de maneira mais presente o Camilo Santana para que ele tome uma iniciativa de revogar o cronograma de Bolsonaro sobre a implementação do Novo Ensino Médio”, complementou.
Entidades protestam contra o “entulho do golpe”
Em nota encaminhada ao Opinião em Pauta, a UBES mencionou que a consulta pública “não resolve as limitações atuais que já estão acontecendo para os estudantes e professores em todo país, fruto de uma implementação atropelada pelo Governo Temer e Bolsonaro”. Também mantém a posição pró-revogação a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que emitiu comunicado em nome do seu presidente Heleno Araújo, que ainda é o coordenador do Fórum Nacional Popular da Educação. “A ideia é revogar o entulho do golpe. O novo ensino médio veio, por imposição, através de uma Medida Provisória, por um governo que não tinha legitimidade popular, sem qualquer diálogo com os setores da área de educação. Apresentamos a demanda de revogação do ensino médio e da Base Nacional Comum Curricular para Lula, e ele foi sensível aos problemas apresentados e prometeu analisar melhor o pedido”, afirmou.
Na outra ponta, o diretor do Sesi/Senai, Rafael Lucchesi, defende que a reforma vai na direção certa ao superar o modelo de ensino passivo-reprodutivo e incentivar o protagonismo do estudante na construção de um projeto de vida e de carreira por meio de uma abordagem interdisciplinar. “Acreditamos, portanto, que os debates devem ser direcionados para identificar os gargalos e possibilitar uma implementação efetiva do modelo. Para isso, são indispensáveis investimentos, não só em estruturas físicas e equipamentos, como também na formação de professores, cujo papel é determinante para as transformações do sistema de ensino e manutenção da qualidade da prática pedagógica e dos resultados da aprendizagem”, defendeu.
Pesquisa encomendada pelo SESI/SENAI indica o resultado de que 84% dos brasileiros são favoráveis às mudanças na formação dos jovens com o Novo Ensino Médio como forma de reduzir a evasão escolar. Ainda segundo a pesquisa, mais de 70% dos brasileiros aprovam as principais diretrizes da reformulação de ensino.
“O índice de desempenho acadêmico dos nossos estudantes tem sido melhor no Novo Ensino Médio, a experiência de implementação do novo método tem sido um sucesso. Não só pelo pioneirismo, mas também pelos resultados efetivos, satisfação dos pais, satisfação da família, satisfação sobretudo do estudante e alto desempenho escolar”, observa o diretor-geral do SENAI e diretor-superintendente do SESI.
Para o professor Fernando Cássio as pesquisas de opinião não têm embasamento para demonstrar a efetividade do novo modelo do ensino médio. Além disso, para ele, a comprovação da rejeição popular do NEM pode ser comprovada pelas manifestações dos estudantes nas ruas. “Eu participei da manifestação em São Paulo e vi ali um sentido de propósito. Os estudantes estão vivendo, na pele, o desmonte do ensino médio público. Enquanto, isso tem fundação empresarial fazendo pesquisa qualitativa, por telefone, dizendo que tantos por cento aprovam o novo ensino médio. Isso é uma coisa ridícula”, rebate.
“São pesquisas fajutas, metodologicamente pífias, falhas. Porque mais da metade das pessoas que responderam não tem informação suficiente sobre o que é o novo ensino médio. As pessoas só estão respondendo que aprovam, em tese. Na real, o que está acontecendo, aparece nas pesquisas, não nas de opinião, mas nas pesquisas com dados públicos”, acrescenta.
Deputados também se mobilizam contra Novo Ensino Médio
As manifestações já ecoaram nos corredores do Congresso Nacional. Parlamentares do PSOL protocolaram um projeto de decreto legislativo que susta o cronograma nacional de implementação do Novo Ensino Médio. A medida foi autorizada pelo ex-ministro da Educação do governo Bolsonaro, Milton Ribeiro, via portaria 521/2021, que o atual PDL propõe a revogação. O texto é assinado pelos deputados Glauber Braga, Sâmia Bomfim, Chico Alencar, Luciene Cavalcante, Ivan Valente e Tarcísio Motta.
“Se você não revoga esse cronograma, na prática, você faz com que essa consulta anunciada pelo Ministério da Educação seja simplesmente uma forma de procrastinação. É preciso interromper imediatamente esse cronograma de consolidação da reforma do ensino médio, assentida pelo governo Bolsonaro”, pontuou Glauber Braga. Ele completa que uma vez consolidada a revogação, espera-se que o MEC faça um debate aprofundado sobre a etapa escolar com estudantes, professores e profissionais da educação.
“A nossa defesa é que, em primeiro lugar, você tenha um retorno ao modelo do Ensino Médio anterior até então porque o que está acontecendo agora é pior. Aí logo depois você pode ter uma convocação por parte do Ministério da Conferência Nacional de Educação, onde aí sim se vai discutir com estudantes, professores e profissionais da educação, de uma maneira mais profunda, tudo aquilo que pode ser feito para o fortalecimento da educação pública e também do Ensino Médio”.
Críticas ao NEM passam também por infraestrutura, professores sobrecarregados e redução de disciplinas básicas
A reforma do Ensino Médio foi implementada sem um debate amplo com a sociedade e sem uma avaliação adequada dos resultados do programa. Matérias sem conteúdo aprofundado, professores sobrecarregados, ministrando aulas sem estrutura alguma ou formação dentro da sua área e falta de investimentos na formação de professores e na infraestrutura das escolas são só alguns dos problemas enfrentados, que são destacados pelos críticos à medida.
Além disso, a flexibilização na grade de estudos expõe o problema da diferença que há entre o sistema de educação das escolas públicas e das escolas particulares e exclui materiais importantes para formação e análise críticas para o desenvolvimento dos estudantes. Muitas escolas públicas brasileiras enfrentam dificuldades como falta de equipamentos, salas superlotadas e falta de recursos para atividades extracurriculares, o que pode dificultar a aplicação das novas metodologias propostas pelo programa.
Sobre a regulamentação e elaboração de propostas nas esferas estaduais, o que as pesquisas revelam, em breve síntese, é que se produziu uma imensa diversificação na composição dos textos curriculares, de modo a termos atualmente 27 “ensinos médios” pelo País. Há documentos com 200 páginas e há documentos com 900 páginas. Há estados em que foram criadas mais de 200 disciplinas eletivas, e a maioria delas remete a conteúdos de disciplinas convencionais, outras nem isso. (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)