“República das Bananas”: encontros sigilosos no Palácio do Planalto, antes e depois da devassa contra aliados de Bolsonaro, são revelados

A reportagem da agência FolhaPress a seguir transcrita pelo Opinião em Pauta faz lembrar, mais uma vez, o Brasil parecendo aquela clássica república de bananas do que uma economia emergente moderna a ponto de assumir seu lugar entre as principais do mundo.

O texto leva a assinatura do jornalista Ranier Bragon.

 

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O então chefe da inteligência da Receita Federal foi ao Palácio do Planalto na véspera de iniciar uma devassa ilegal em dados sigilosos de desafetos de Jair Bolsonaro (PL), em 2019, e voltou ao local no dia em que concluiu o trabalho, indo especificamente ao gabinete de Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

Nesses dias, não há na agenda pública oficial de Bolsonaro ou do general Heleno registro de compromisso com Ricardo Pereira Feitosa, que coordenou o setor de Pesquisa e Investigação do Fisco de maio a setembro de 2019.

Planilhas do sistema de entrada e saída do Planalto, obtidas pela Folha via Lei de Acesso à Informação, mostram que o então chefe de inteligência da Receita entrou pela primeira vez no local no dia 9 de julho de 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro (2019-2022). Os documentos, porém, não informam o destino específico dentro do palácio.

No dia seguinte, 10 de julho de 2019, Feitosa fez nas bases da Receita os primeiros acessos ilegais e copiou em PDF dados fiscais sigilosos do então procurador-geral de Justiça do Rio Eduardo Gussem (coordenador das investigações do caso das “rachadinhas”, cujo alvo principal era Flávio Bolsonaro, filho do presidente), do ex-ministro Gustavo Bebianno e do empresário Paulo Marinho, políticos que eram próximos, mas havia rompido com a família presidencial.

Seis dias depois, em 16 de julho de 2019, Feitosa fez novo acesso ilegal aos dados de Bebianno e Marinho nas bases do Fisco, vasculhando dessa vez também os dados da mulher do empresário, Adriana Marinho.

Às 17h45 deste mesmo dia, 16 de julho, o então chefe na Receita voltou ao Planalto, mas dessa vez as planilhas registraram que ele teve como destino o gabinete de Heleno, um dos ministros mais próximos a Bolsonaro.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, Feitosa acessou os dados fiscais sigilosos do chefe do Ministério Público do Rio e dos políticos desafetos da família Bolsonaro sem que houvesse nenhuma motivação formal para isso, atitude que não é permitida pela lei.

A Receita abriu uma investigação interna em 2020 e o caso está atualmente na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional com a recomendação de demissão de Feitosa do serviço público. A decisão final cabe ao ministro Fernando Haddad.

Os dados do sistema de registro de entradas e saídas do Planalto obtidos agora pela Folha mostram que Feitosa entrou nove vezes na sede do governo com registro na portaria, no período em que chefiou a inteligência do Fisco.

Em três dessas ocasiões há menção de que o destino era o gabinete de Heleno, mas nas outras seis não foi informado destino específico dentro do palácio.

As primeiras vezes que o chefe da Receita ingressou pela portaria do Planalto foram justamente nos dias 10 e 16 de julho de 2019. No dia 10, as agendas públicas de Bolsonaro e de Heleno não registram encontros com Feitosa. No dia 16, data em que o chefe da Receita praticamente concluiu os acessos ilegais que faria nas bases do Fisco, a entrada de Feitosa no Planalto ocorreu às 17h45.

De acordo com o documento, seu destino foi o gabinete de Heleno e, 5 minutos e 8 segundos depois, às 17h51, ele deixou o Planalto.

No dia 16, a agenda oficial pública de Heleno afirma que ele participou das 8h às 17h34 de reunião do Conselho de Governo, presidida em parte por Bolsonaro. Ou seja, pelos registros oficiais, ele teria deixado a reunião 11 minutos antes da chegada de Feitosa ao seu gabinete.

Fotos feitas da reunião ministerial comandada por Bolsonaro mostram Heleno entre os participantes do encontro.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, comanda a 16ª Reunião do Conselho de Governo, em 16 de julho de 2019; Augusto Heleno é o antepenúltimo do lado direito da mesa Marcos Corrêa-16.jul.2019/Divulgação Presidência da República Bolsonaro e ministros sentados em volta de uma mesa retangular **** A agenda de Bolsonaro lista a reunião ministerial e uma série de compromissos com auxiliares, parlamentares e outras pessoas, mas não há menção ao nome de Feitosa.

De acordo com as investigações posteriores feitas pela Receita, Feitosa faria após o dia 16 apenas mais um acesso ilegal de dados sigilosos, em 18 de julho, relativo a Paulo Marinho.

Ao todo, o então chefe da inteligência da Receita vasculhou e fez cópias de dados dos desafetos de Bolsonaro em quatro sistemas sigilosos da Receita: o de Imposto de Renda, um que reúne ativos e operações financeiras de especial interesse do Fisco, um de comércio exterior e uma plataforma integrada alimentada por 29 bases de dados distintas.

Cerca de um ano depois dessa devassa, a defesa de Flávio Bolsonaro mobilizou vários órgãos do governo do pai justamente sob a afirmação de que havia um esquema de acesso ilegal de seus dados fiscais, o que teria embasado a produção do Relatório de Inteligência Financeira que chegou ao Ministério Público do Rio e deflagrou o caso das “rachadinhas”.

A partir de agosto de 2020, advogados do filho do presidente se reuniram, entre outros, com o GSI de Heleno e com a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), comandada por Alexandre Ramagem, para tratar do assunto.

Naquele período, a Receita também mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar a acusação do Flávio, mas ao final afirmou não ter encontrado indícios nesse sentido.

As outras duas vezes em que há registro de entrada de Feitosa no Planalto para ida ao GSI são relativas aos dias 18 e 19 de setembro de 2019, poucos dias antes de sua exoneração do cargo.

No dia 18 a agenda pública de Heleno registra reunião com Bolsonaro pela manhã, além de outros compromissos. No dia 19, três reuniões: com Bolsonaro, depois com integrantes da Escola Superior de Guerra e, por fim, com o desembargador Carlos Brandão e o chefe da Abin, Alexandre Ramagem. Não há nesses dois dias menção a Feitosa.

A reportagem localizou apenas uma agenda pública em que o nome de Feitosa aparece. Trata-se de um encontro no GSI em 18 de junho entre ele, Heleno e o então secretário da Receita, Marcos Cintra. Nesse dia Feitosa não aparece nos registros de entrada e saída da portaria do Planalto, podendo ter ingressado por outro local, como a garagem.

 

OUTRO LADO

Heleno diz não se lembrar de encontro fora da agenda. Augusto Heleno afirmou que nunca teve conhecimento de acessos ilegais na Receita Federal de dados sigilosos de desafetos de Bolsonaro.

Ele disse que o encontro registrado em sua agenda com Feitosa e o então secretário da Receita, Marcos Cintra, em junho de 2019, foi possivelmente uma visita de cortesia. “Sempre tive ótimo relacionamento com o dr. Marcos Cintra. Fora isso, o GSI é a cabeça do Sistema Brasileiro de Inteligência”, afirmou.

Sobre as idas de Feitosa ao Palácio do Planalto e ao GSI exatamente no período em que o chefe da inteligência da Receita promovia a devassa contra adversários do presidente, Heleno afirmou não se lembrar dessas visitas.

“Não me lembro dele nem do que o teria levado ao meu gabinete. Pode ter sido recebido por qualquer dos meus adjuntos”, afirmou.

A Folha não obteve resposta de Frederick Wassef, advogado que representa Bolsonaro. A defesa de Feitosa disse que iria tentar contato com o cliente na manhã desta segunda-feira (13), mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Por meio de mensagens de texto, Marcos Cintra também disse desconhecer os acessos imotivados feitos por seu então subordinado e afirmou que o encontro de junho que teve com Feitosa no gabinete de Heleno ocorreu para que o novo chefe da inteligência do Fisco fosse apresentado ao ministro.

Questionado se nessa reunião teria sido falado algo sobre investigação de dados de Bebianno, Marinho ou Gussem, Cintra respondeu: “Nada. Naquele momento se discutia o atentado [cometido no ano anterior por Adelio Bispo contra Bolsonaro] e pedido feito à Receita Federal para ver origem do pagamento ao advogado do Adelio Bispo”.

Cintra disse também que havia discussão sobre as investigações sobre vazamentos de dossiês de dados fiscais de ministros de tribunais superiores e suas esposas.

Questionado sobre como se deu essa discussão, Cintra afirmou que houve apenas uma conversa informal e genérica, porque eram assuntos que estavam sendo noticiados pela imprensa.

“Você perguntou se falamos sobre a pesquisa do Feitosa. Não. O mais provável é que falamos sobre esses assuntos gerais. Foi uma visita de apresentação, sem pauta.” (Foto Ilustração)

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