Relatório diz que clã Bolsonaro e auxiliares mentiram à PF sobre joias na fazenda de Piquet

Segundo documento da PF, “estratégia articulada pelos investigados era garantir versão falsa” sobre armazenamento de joias na Fazenda Piquet

 

De acordo com conclusões do relatório da Polícia Federal (PF) que indiciou Jair Bolsonaro (PL), pessoas ligadas ao ex-presidente mentiram para a PF sobre o armazenamento de um dos kits presenteados pelo governo da Arábia Saudita na Fazenda Piquet, em Brasília. O relatório aponta que os investigados articularam uma estratégia para sustentar a versão falsa de que as joias estavam na Fazenda Piquet, pertencente ao ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet.

Diversos investigados repetiram essa narrativa, que foi desmentida pela apuração policial. Segundo o documento, após uma tentativa frustrada de vender as joias e diante da restrição legal de comercializar bens do acervo presidencial no exterior, além da divulgação na imprensa sobre o kit de joias, Mauro Cid, Marcelo Camara e Osmar Crivelatti organizaram uma “operação de resgate” dos bens, afirmando que estavam na Fazenda Piquet.

Em depoimento no dia 5 de abril de 2023, em Brasília, Bolsonaro declarou nunca ter ficado em posse das joias e que, ao deixar o Brasil no final de seu mandato para não entregar a faixa presidencial para Lula, não levou os itens em questão para os EUA. O ex-presidente alegou que o kit da grife Chopard, composto por uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um masbaha (espécie de rosário árabe) e um relógio, foi encaminhado ao seu acervo presidencial armazenado em uma fazenda de Piquet no Lago Sul, área nobre da capital federal.

O ex-piloto é próximo de Bolsonaro e foi o maior doador da campanha do então presidente e candidato à reeleição entre as pessoas físicas após repassar a cifra de R$ 501 mil. Mas, conforme a PF conseguiu comprovar ao longo das apurações, o kit ouro rosé foi levado para a Flórida a bordo do avião presidencial. Já em solo americano, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid levou os itens pessoalmente à sede da Fortuna Action House, empresa especializada em leilões de joias, em Nova York. Elas foram submetidas a leilão em fevereiro do ano passado, mas não foram arrematadas.

Ainda segundo o relatório, o kit foi desviado do acervo presidencial com a ajuda do então chefe do Gabinete de Documentação Histórica da Presidência da República, Marcelo Vieira, um dos 11 aliados de Bolsonaro indiciados pela PF. Os itens entraram no Brasil sem sobressaltos, ao contrário do primeiro kit feminino da Chopard revelado pelo jornal Estado de S. Paulo, que foi apreendido pela Receita Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) no retorno da comitiva presidencial ao Brasil de um périplo pelo Oriente Médio que incluiu a Arábia Saudita em outubro de 2021.

Os bens estavam na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Já o kit ouro rose passou incógnito na bagagem de Albuquerque. Após a divulgação da existência do segundo kit e a determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) para que fossem devolvidas ao poder público, Bolsonaro e aliados orquestraram uma força-tarefa para retomar as joias nos Estados Unidos.

O plano, chamado de “operação clandestina” no relatório, tinha o objetivo de “não levantar a suspeita que os bens, na verdade, estavam no exterior” – e contradiz frontalmente a versão apresentada por Bolsonaro de que as joias estavam na fazenda de Nelson Piquet. Uma vez recuperada pessoalmente por Cid na sede da Fortune, as joias foram levadas para a Flórida, estado americano onde Bolsonaro se instalou após deixar o Brasil e onde vivia o pai do tenente-coronel, o general Mauro Lourena Cid, na época lotado em um escritório da Apex em Miami.

O kit só viria a ser devolvido em 4 de abril de 2023, na véspera do depoimento do ex-presidente à PF na qual negou de forma veemente que os bens tenham sido levados para os EUA. As tratativas para a retomada dos bens foram discutidas por Mauro Cid e o coronel da reserva Marcelo Câmara, assessor de Bolsonaro, em diálogos no WhatsApp. Alguns dos diálogos deixam claro que a dupla tinha ciência da irregularidade das transações envolvendo as joias no exterior.

Em 13 de fevereiro de 2023, Câmara enviou um áudio para Cid relatando uma conversa com Marcelo Vieira, então chefe do Gabinete de Documentação Histórica da Presidência. “Eu perguntei para o Marcelo [Vieira,]. Marcelo me explicou o seguinte: apesar de ser um presente personalíssimo, ele [Bolsonaro] pode fazer o que quiser. Mas se for pra [vender] no Brasil, pra brasileiro, alguma coisa, doar, vender, dar de presente… Qualquer coisa não tem problema nenhum. Não precisaria avisar. Mas como é no exterior, obrigatoriamente eu tenho que avisar. Então, para não gerar problema, melhor voltar. E aí, em uma outra oportunidade, pode leiloar, mas só que no Brasil mesmo, ok?”, disse Marcelo Câmara.

“Fechado. Só dá pena porque estamos falando de 120 mil dólares”, respondeu Cid, por escrito, emendando com gargalhadas.

O argumento de Vieira relatado por Marcelo Câmara, porém, não encontra amparo na jurisprudência do TCU – que determinou a custódia dos bens pela União e não reconheceu as joias como “itens personalíssimos”, que é a exceção prevista para presentes que podem ser mantidos por presidentes da República após o término do mandato.

Um terceiro kit, composto por um relógio Rolex, uma caneta Chopard, um par de abotoaduras, um anel e um masbaha, também foi omitido da Justiça por Bolsonaro. A venda do relógio em uma loja na Pensilvânia, nos EUA, levou a uma força-tarefa para recuperar a joia, que acabou recomprada por Frederick Wassef, um dos advogados de Bolsonaro.

Este conjunto, porém, havia sido presenteado ao então presidente em outro roteiro pelo Oriente Médio, em outubro de 2019, com passagens de Bolsonaro pelo Catar e a Arábia Saudita. Em nota divulgada à imprensa, a defesa de Bolsonaro afirmou que o ex-presidente “em momento algum pretendeu se locupletar ou ter para si bens” que pudessem ser considerados públicos.

Os advogados de Bolsonaro também sustentam que o caso não deveria tramitar no Supremo Tribunal Federal (STF) sob a relatoria de Alexandre de Moraes, e sim na Justiça de Guarulhos, como defendeu a gestão de Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República (PGR). A posição da PGR, no entanto, foi revista depois.

A defesa ainda manifestou “completa indignação” com a informação do relatório da PF de que o ex-presidente teria tentado beneficiar-se de bens cujos valores alcançariam R$ 25 milhões, um número que “somente após enorme e danosa repercussão midiática foi retificado pela Polícia Federal”. Após a correção, a PF informou que o esquema desviou bens que somam R$ 6,8 milhões.

(Foto:  Anderson Riedel/Presidência)

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