Portugal, sonho e realidade (2) : Piora no atendimento de saúde pública faz crescer medicina privada

Henrique Acker (correspondente internacional)  –  Num processo negocial com o governo que se arrasta há 16 meses, os médicos portugueses passaram à ofensiva desde julho deste ano, com paralisações regionais que se avolumaram até outubro. É possível que os profissionais de saúde avancem a um movimento de paralisação nacional até o final deste ano, caso suas reivindicações não sejam respondidas de forma satisfatória. De concreto apenas o fato de existirem negociações, mais nada.

O governo português alega que o orçamento para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) chega a 14 bilhões de euros anuais, mas oferece reajuste salarial médio de 3,1% aos profissionais. Aos que trabalham em regime de 40 horas semanais, o governo propõe um reajuste de apenas 1,2%

Na pauta, além dos 22% para repor as perdas de 2022, os médicos querem a contratação de profissionais e se recusam a fazer mais do que as 150 horas extras anuais, previstas na legislação. Nos hospitais, as escalas de serviços estão abaixo do mínimo necessário em termos de pessoal em muitos setores.

Em consequência da falta de pessoal, estrutura para trabalhar e dos salários, que são dos mais baixos da União Europeia, cerca de 2.300 médicos abandonaram o SNS nos últimos dois anos, enquanto outros 2.600 se aposentaram no mesmo período.

 

Falta de médicos de família, demora nas consultas e procedimentos

A ponta do iceberg da crise se manifestou este ano nos serviços de obstetrícia dos hospitais públicos, com o fechamento do atendimento em algumas maternidades. No início de outubro, a crise se alastrou e atingiu 25 unidades hospitalares do SNS nas diversas especialidades em todo o país, sobretudo em Lisboa, Porto e nas maiores cidades.

Os usuários reclamam que as marcações de procedimentos cirúrgicos e consultas no SNS estão demorando meses e até anos. O número de usuários sem médico de família em abril de 2023 era de 1,7 milhão, segundo dados do Portal de Saúde de Cuidados Primários, do próprio SNS. Isso explica a oferta de emprego do governo português a médicos brasileiros e de outras nacionalidades.

O atendimento do médico de família é a porta de entrada do SNS, com profissionais que tratam dos cuidados de saúde primários e que encaminham pacientes a serviços especializados e a exames, quando necessário.

De acordo com Cecília Sales, do Movimento de Utentes dos Serviços Públicos,  “o número de médicos de família tem muito a ver com as más condições de atendimento”, o que acaba por também causar uma maior pressão nos serviços de urgência, para onde acabam por ir muitas pessoas que queriam apenas uma consulta.

 

Novo modelo de administração em 2024

Em meio à crise que se avoluma, o governo português aprovou uma reforma do SNS. A partir de janeiro de 2024, os hospitais e centros de saúde de uma mesma região vão passar a estar organizados em Unidades de Saúde Local (ULS) e passam a ter uma única administração.

O novo modelo prevê, também, novas formas de financiamento. Uma avaliação anual irá definir os montantes de recursos a receber, não só pelo número de usuários, mas acima de tudo pelo risco associado.

“Infelizmente, os exemplos de ULS que temos são de fracasso. Os hospitais com mais dificuldades estão, curiosamente, inseridos em ULS”, alerta o dirigente da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes.

 

Cresce a rede privada de saúde

Enquanto isso, de 2017 a 2022, o Estado pagou 60,8 milhões de euros em comissões para empresas de prestação de serviços que agenciam médicos e enfermeiros para o SNS. Só em 15 milhões de horas extras contratadas a profissionais de saúde tarefeiros, o governo português pagou 400 milhões de euros entre 2020 a 2022. Calcula-se que este dinheiro seria suficiente para contratar cerca de 15 mil profissionais para o SNS.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a despesa total em saúde em Portugal foi de 20,4 bilhões de euros em 2020. Destes, 13,8 bilhões foram despesas do setor público e 6,6 bilhões do setor privado, dos quais 5,4 bilhões diretamente pelas famílias e 994 milhões por seguradoras.

Acresce ainda que, dos 13,8 mil milhões de despesa do Orçamento do Estado com saúde em 2021, 41% foram absorvidos pelo setor privado, seja em externalização de intervenções cirúrgicas ou em exames de diagnóstico.

 

Avançam os seguros de saúde

Em consequência da degradação dos serviços do SNS, mais portugueses aderem aos seguros privados de saúde. O número de pessoas com seguro de saúde (seja a título individual, seja através da entidade empregadora) em Portugal passou de 2.195.762, em 2012, para 3.155.252, em 2021, de acordo com os dados da Associação Portuguesa de Seguradores, uma subida de 43%.

Os preços de mensalidades de planos privados de saúde individuais oferecidos no mercado português ainda são suportáveis (algo em torno de 35€/mês). Isso porque grande parte do faturamento das maiores seguradoras e redes de hospitais privados é obtido pela parceria com o Estado, que repassa os valores de procedimentos e exames realizados na rede privada pelos usuários do SNS.

O que ocorre em Portugal lembra, em muito, o processo de degradação do Serviço Único de Saúde brasileiro, e o consequente avanço da medicina privada. Nos primeiros anos os planos de saúde também ofereciam mensalidades relativamente baratas.

No entanto, com o passar do tempo e o avanço da crise da saúde pública, os preços de planos privados dispararam, mas os serviços também caíram em qualidade. Os valores pagos por consultas aos médicos credenciados também foram sendo achatados e o tempo de repasse dilatado.  (Foto: Getty Images)

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

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