Henrique Acker (Correspondente internacional) – A mesma tempestade Daniel, que dias antes inundou larga faixa de território na Grécia, atingiu fortemente a faixa litorânea leste da Líbia, voltada para o Mar Mediterrâneo.
Na noite de 10 de setembro, uma avalanche varreu a cidade de Derna, com cerca de 100 mil habitantes.
Nas primeiras horas após a enxurrada, as notícias davam conta de dois mil mortos e 10 mil desaparecidos. No entanto, a organização de socorro internacional, Crescente Vermelho, informou, em 14 de setembro, que o total de mortos já chegava a 11.300. Outras 10 mil estariam desaparecidas. Há ainda cerca de seis mil desalojados em Benghazi.
A principal causa: duas barragens romperam perto do núcleo urbano e as águas desceram por um vale que corta a cidade de Derna, levando pessoas, carros e prédios no caminho que termina no mar.
De acordo com dados do Fundo de Respostas de Emergência das Nações Unidas, há, no total, 884.000 pessoas que necessitam de assistência por causa das cheias, sendo que dessas, 250.000 precisam de ajuda urgente e imediata para sobreviver, indicou a ONU na sua conferência de imprensa diária.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM) já havia emitido avisos de perigo 72 horas antes da tempestade atingir o país. “Se houvesse um serviço meteorológico funcionando regularmente, poderia ter emitido um aviso”, afirmou Petteri Taalas, diretor da OMM, alertando que teria sido possível remover uma parte da população antes do desastre.
Nação rica e próspera
De acordo com documentos de 2010 do Banco Mundial, a Líbia mantinha então “elevados níveis de crescimento econômico ”, com um aumento anual do seu PIB de 7,5%, registrando “elevados indicadores de desenvolvimento humano ”, como o acesso universal ao ensino primário e secundário e com mais de 40% das pessoas matriculadas em estudos universitários.
Graças à exportação de recursos energéticos líbios, a balança comercial da «Grande Jamahiriya Árabe Líbia Popular Socialista» (como era oficialmente o regime líbio) registrou um excedente anual de 27 bilhões de dólares. Com recursos tão grandes, o Estado Líbio investiu cerca de 150 bilhões de dólares no estrangeiro.
Os investimentos da Líbia na África foram fundamentais para o projeto da União Africana, que visava a criação do Fundo Monetário Africano (em Camarões), Banco Central Africano (na Nigéria) e o Banco Africano de Investimento, com sede em Trípoli (capital da Líbia).
Estas novas organizações financeiras africanas deveriam criar um mercado comum e uma moeda única para as nações de África.
OTAN destruiu e dividiu o país
No entanto, os efeitos da crise e a divisão política do país depois da intervenção militar da OTAN, em 2011, também se fizeram sentir num momento de tragédia.
Naquela ocasião, em sete meses, aviões dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália realizaram 30.000 missões contra a Líbia, incluindo 10.000 missões de ataque, utilizando mais de 40.000 bombas e mísseis contra o povo líbio.
Muammar el-Kadhafi foi assassinado e o regime, até então estabelecido, derrubado. Grupos regionais tribais passaram a disputar o controle do país, alimentados pelo apoio político e militar de diferentes potências, em conflitos armados que dividem a Líbia.
Atualmente, o país tem dois governos e dois primeiros-ministros: Abdul Hamid Dbeibah fica em Trípoli e comanda a faixa oeste; já Ossama Hamad governa o lado leste da cidade de Benghazi. Enquanto Trípoli tem o apoio da Turquia, Catar e Itália, o governo de Benghazi é respaldado por Egito, Rússia e Emirados Árabes.
Instaurou-se um clima de insegurança, corrupção generalizada e desleixo com a administração pública, com graves consequências para a população dos dois lados do país.
2023: violência, abandono e migração
Não é por acaso que a guerra da OTAN contra a Líbia começou menos de dois meses depois da cúpula da União Africana que deu – em Janeiro de 2011 – luz verde para a criação, naquele mesmo ano, do Fundo Monetário Africano. Provas disto são os e-mails da Secretária de Estado da administração Obama, Hillary Clinton, mais tarde divulgados pelo WikiLeaks.
Os Estados Unidos e a França queriam eliminar Muammar el-Kadhafi antes que o líder líbio usasse as reservas de ouro do seu país para criar uma moeda pan-africana, como alternativa ao dólar americano e ao franco CFA (a moeda que a França impôs desde 1945 em 14 das suas antigas colónias africanas).
Antes do início dos bombardeios, em 2011, os bancos agiram contra a Líbia, apreendendo os 150 bilhões de dólares que o Estado líbio tinha depositado no estrangeiro e a maior parte dos quais “desapareceu”. Entre os bancos, o Goldman Sachs, banco empresarial americano.
Atualmente, os rendimentos das exportações de hidrocarbonetos da Líbia vão para as mãos de grupos que disputam o poder e de algumas empresas transnacionais estrangeiras, enquanto a população libia tenta sobreviver em meio a uma situação caótica, caracterizada por confrontos armados constantes entre diferentes facções.
Como consequência da atual situação desoladora do país, a Líbia, que antes chegou a receber cerca de dois milhões de imigrantes da África e Oriente Médio, hoje é um dos pontos de embarque de milhares de pessoas que saem da região para o Sul da Europa. (Foto: REUTERS/Reprodução)
Por Henrique Acker (Correspondente internacional)
Fontes: AlJazeera, Il Manifesto, Agência Lusa/CNN Portugal