Pela primeira vez, cerimônia foi fora de um estádio. Apresentação reuniu lendas do esporte, símbolos culturais do país e apresentações de artistas como Céline Dion e Lady Gaga
Uma abertura extravagante, ousada e sem precedentes nas águas do rio Sena. Assim pode ser definida a celebração de início das Olimpíadas de Paris 2024. Debaixo de chuvas torrenciais, a festa trouxe mensagens de diversidade e registrou discretas manifestações políticas.
Pela primeira vez, um evento de abertura rompeu a tradição de ser realizada em um estádio e de separar as coreografias que contam a história do país-sede do desfile de delegações, que foram mesclados. Ela ocorreu às margens do rio Sena, exibindo toda a exuberância da capital francesa.
O tradicional desfile dos aletas ganhou agilidade e ficou mais animado, com as delegações ocupando barcos que navegaram por seis quilômetros do rio, com shows intercalados. E terminou de maneira emocionante: do alto da Torre Eiffel, a cantora Céline Dion, que sofre da Síndrome da Pessoa Rígida, uma doença neurológica rara, interpretou Hymne à l’amour (o Hino ao Amor), obra da francesa Édith Piaf, de forma magnífica. Ela não se apresentava há cinco anos.
Ao fim, lendas do judô e do atletismo, os multicampeões franceses Teddy Riner e Marie-José Perec foram os escolhidos para a missão de acender a pira olímpica de Paris-2024. Juntos, receberam o fogo olímpico de Charles Coste, o mais velho medalhista olímpico francês vivo, depois de um revezamento que reuniu 18 atletas olímpicos e paralímpicos da França – como a tenista Amélie Mauresmo e Tony Parker, do basquete.
E levaram até uma versão impressionante da pira: um balão suspenso sobre os Jardins das Tulherias, alinhado ao Museu do Louvre, a Praça da Concórdia, a Champs-Élysées e o Arco do Triunfo. O balão permanecerá nas alturas, com a chama olímpica sempre acesa até o encerramento da competição.
O presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, e o mandatário francês, Emannuel Macron, haviam manifestado o desejo de que os Jogos fossem despolitizados. A expectativa de que delegações de esportistas demonstrassem solidariedade em grande escala à Palestina não se concretizou e a distância do público, a inclusão de inúmeras passagens previamente gravadas e a tempestade que caiu contribuíram para esfriar os ânimos.
Porém, alguns incidentes deram tom político ao evento. Recém-saída de eleições em que foi necessária a união de forças antagônicas para brecar a chegada da extrema direita – com ideário racista e xenofóbico – ao poder, a organização dos Jogos apostou em mensagens de inclusão e diversidade. Ainda houve apresentações de defesa da União Europeia, bandeira de Macron, que bate de frente com o discurso dos seus adversários.
A cerimônia começou com o ex-jogador de futebol Zidane – herói nacional de origem argelina – entregando a tocha olímpica para três garotos de etnias diferentes. As primeiras delegações que desfilaram também quebraram padrões, com a Alemanha escolhendo um porta-bandeira negro e a Arábia Saudita, uma mulher. A escolha do casal de atletas franceses negros para acender a pita olímpica, também foi em consonância com a ideia de igualdade entre gêneros e povos.
A delegação da Argélia jogou flores no Sena, em memória dos milhares de argelinos mortos por franceses na guerra de independencia. Em 1961, um protesto de argelinos em Paris foi massacrado pela polícia e os corpos de vários manifestantes acabaram jogados no rio.
Havia expectativa em relação à passagem dos atletas de Israel, que contou com a presença de um forte esquema de segurança. Cogitou-se a possibilidade de que o barco da delegação desfilasse vazio, mas no final os esportistas também estiveram a bordo.
Em telões espalhados pela cidade, ouviram-se vaias vindas da multidão quando os atletas de Israel desfilaram. Eles foram liderados pelo porta-bandeira Peter Paltchick, judoca de origem ucraniana, que costuma assinar bombas usadas por militares israelenses contra civis na Faixa de Gaza.
Por outro lado, o porta-bandeira Palestino Waseem Abu Sal usou a cerimônia para denunciar o genocídio de seu povo atualmente em curso. A roupa do palestino traz o desenho de bombas caindo enquanto uma criança joga bola.
A cerimônia também celebrou a inédita igualdade de gênero nos Jogos Olímpicos. Essa é a primeira edição dos jogos em que há paridade entre homens e mulheres. Dez mulheres francesas de destaque foram homenageadas no evento, com estátuas que apareceram ao longo do desfile.
A delegação brasileira também se destaca pela quantidade de mulheres. Pela primeira primeira vez a delegação feminina é maior do que a masculina. Elas representam 153 dos 276 atletas assegurados na capital francesa, segundo o Comitê Olímpico do Brasil (COB). São as mulheres, também, que lideram as chances de medalhas para o país.
Os atletas do Brasil, aliás, se destacaram como um dos grupos mais animados a desfilar. Chamou a atenção os uniformes escolhidos pelo Comitê Olímpico Brasileiro, bastante criticados por supostamente parecerem roupas usadas em igrejas e não terem elementos de brasilidade para além dos bordados. Estes foram confeccionados por cerca de 80 costureiras de Pernambuco que assistiram, juntas e orgulhosas, a abertura pela TV.
Os porta-bandeiras foram Isaquias Queiroz, da canoagem velocidade e Raquel Kochhann, do rúgbi. Logo após o desfile, no entanto, os atletas se retiraram para a Vila Olímpica, visando a preparação para as competições.
Depois de um dia de tensão, cerimonia trouxe leveza e bom humor
Se ao longo do dia a capital francesa viveu o clima de tensão, com “sabotagens” nos trens de alta velocidade, com a evacuação do aeroporto de Basel-Mulhouse por “razões de segurança”, e pela prisão de suspeitos, que estariam arquitetando ataques terroristas, o que se viu ao longo das quatro horas de evento, foi só a forte chuva ameaçar a grandiosidade do espetáculo. Mas nem elas atrapalharam diretamente o show.
A cerimônia começou com bom humor. Carregando a tocha olímpica, o ator franco-marroquino Jamel Debbouze chega a um vazio Stade de France acreditando que o estádio – que receberá o atletismo –, seria o palco da abertura. Lá, ele encontra o ex-jogador Zinédine Zidane, que informa que a cerimônia é no Rio Sena, e se oferece para levar a tocha até lá.
O astro do futebol corre pela cidade passando por referências como os cafés típicos da Paris da “Belle Époque” e até desviando do engarrafamento. No metrô, ele passa a tocha a um trio de crianças que o acompanhou no trajeto. O menino que pega o objeto é imigrante.
Pelo rio que é um dos principais cartões-postais da cidade, as delegações desfilaram em 85 barcos. O roteiro intercalava a apresentação dos atletas com shows como o da francesa Aya Nakamura e de Lady Gaga, que se apresentou ao lado do balé Moulin Rouge homenageando Zizi Jeanmaire, uma das maiores estrelas do balé francês.
O show ainda contou com um vídeo – que também evoluía no curso do Sena – repleto de referências à cultura francesa, com elementos que remetem à moda do país, como a grife Louis Vuitton, o cinema, com o romance “O Fantasma da Ópera”, e até aos videogames, com a série “Assassin’s Creed”.
Diferente de outras edições, a segmentação da apresentação deixou a cerimônia de abertura mais dinâmica – sem o tradicional (mas interminável) desfile das delegações em um estádio –, mas também dificultou a vida de quem tentava acompanhar o evento em diferentes pontos da capital francesa.
Em todo o percurso do rio, franceses privilegiados que vivem próximo do rio acompanharam a apresentação de suas janelas. Por questões de segurança, porém, não foi possível abrir as margens do Sena à população, mas ao redor de Paris foram instalados 80 telões em 18 locais para que o público pudesse acompanhar a apresentação.
(Foto: Pawel Kopczynski/Reuters)