Organizadas e eficazes: o que está por trás da onda de fake news sobre o RS

Luiz Carlos Azenha – Um olhar detalhado sobre as fake news espalhadas pelo bolsonarismo depois da tragédia do Rio Grande do Sul revela uma inteligência política e uma eficácia não só para disseminar determinadas ideias, mas para bloquear outras.

O ponto central, para a qual quase todas as mentiras convergem, é o fracasso do Estado em todas as suas dimensões para salvar vidas, o que estaria sendo feito pelos “cidadãos de bem”. Aliás, o Estado não apenas não faz sua parte, como atrapalha.

Não é verdade que a Sefaz (Secretaria da Fazenda) do governo do Rio Grande do Sul esteja exigindo nota fiscal e impedindo a entrada de caminhões com mantimentos doados a vítimas da enchente no estado, como alegam publicações nas redes. Em nota, a secretaria negou que veículos estejam sendo retidos em postos fiscais.

 

Bolsonaro, o anti-estado

Mas, como isso pode ajudar Jair Bolsonaro? Em 2018, ele se elegeu como o anti-establishment, o zé ninguém que luta contra tudo e contra todos, inclusive “poderes ocultos”.

Na tragédia do Rio Grande do Sul, há vários episódios em que meias verdades passam a circular em grupos de WhatsApp, por conta de reclamações pontuais sobre a ajuda oferecida pelos governos federal, estadual e locais.

Em seguida, os temas com potencial de exploração política são capturados por personalidades bolsonaristas, que as disseminam em escala industrial.

Eliara Santana, doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas e que faz o pós-doutorado na Unicamp mergulhada nas redes bolsonaristas, afirma:

Eles vão em pontos-chave, como a história das multas aos caminhões com doações. Que o SBT tratou de espalhar. Era discurso reiterado que o Estado sob o PT mantinha “indústria de multas”. Essa ideia de um Estado neoliberal ao extremo está presente nessas fakes. Tudo gira em torno do funcionamento institucional.

Os bolsonaristas também parecem interessados em detonar o Exército, numa espécie de vingança contra a falta de ação dos militares para apoiar com tropas o golpe de 8 de janeiro.

Seu alvo principal, no entanto, é o governo Lula. Na lista das fake news mais populares até agora está a de que Lula proibiu a entrega de donativos aos atingidos pelas enchentes até sua chegada ao Rio Grande do Sul.

 

Ajuda da mídia comercial

A Folha de S. Paulo também contribuiu com o bolsonarismo, ao disseminar em título a meia verdade de que o governo Lula teria descartado a ajuda do Uruguai nos resgates.

Na verdade, o Comando Conjunto Ativado para a Operação Taquari 2, organizado pelas Forças Armadas, informou ao Uruguai que já dispunha de barcos, drones e aeronaves adequados para fazer os resgates.

Um helicóptero do Ministério da Defesa do Uruguai, no entanto, foi autorizado a operar no Brasil para fazer salvamentos.

A Folha de S. Paulo cravou que o governo Lula rejeitou oferta de ajuda do Uruguai, manchete rapidamente capturada por órgãos bolsonaristas como a Gazeta do Povo, do Paraná, e amplamente disseminada.

Curiosamente, a Folha não escolheu escrever: “Militares brasileiros rejeitam oferta do Uruguai”, mas sim governo Lula.   Meias verdades com endosso da mídia comercial tem um potencial muito maior de disseminação, afirma Eliara Santana:

O ataque calculado, sistematizado e sistemático à funcionalidade do Estado, às instituições — isso é desestabilizador e não aleatório, pelo contrário. É um modus operandi para solapar o estado democrático de direito. A rapidez na construção de narrativas e a costura fina delas. Não são boatos loucos, estapafúrdios, é relato de desinformação, mentira, construído e bem construído. Ou seja, o ecossistema [bolsonarista] sobrevive.

Além disso, as fake news suscitam um debate que serve como cortina de fumaça para impedir as discussões relevantes sobre a tragédia, como a crise climática e o impacto da especulação imobiliária e do agronegócio nela.

A mesma cortina de fumaça encobre a inação de deputados e senadores bolsonaristas, que nada fizeram sobre as repetidas tragédias ambientais no estado.

Do hospital, o próprio Jair Bolsonaro sintetizou a campanha de seus seguidores para tumultuar o socorro ao Rio Grande do Sul, referindo-se ao Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), do governo Lula:

A problematização do clima realizada pela organização é pura desinformação como meio para atingir um fim. Tudo orquestrado pelos gigantes que exigem dos outros o que não cumprem. Ou seja, inviabilizam o desenvolvimento de países com potencial, garantindo aos líderes destas repúblicas a sua manutenção no poder sob o custo de escravizar ainda mais seu próprio povo. No final quem paga por tudo isso é o contribuinte, com aumento de impostos, desemprego e mais dependência ainda do estado. Feito!

Em resumo, Bolsonaro não se importa com a destruição ambiental, diz que gente de fora está mantendo Lula artificialmente no poder — um ataque às instituições brasileiras — e sustenta que se trata apenas de uma conspiração, da qual Lula participa, para “escravizar o povo”.

Além de estar em linha com as teorias de conspiração sobre as quais se assenta o renascimento do neofascismo no mundo, a postagem de Bolsonaro apenas confirma a estratégia do ecossistema bolsonarista denunciada por Eliara Santana.  (Foto: Conceição Oliveira, a partir de Felipe Pena)

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