Coronel revelou ao periódico GLOBO como se desfez da ossada de um ex-deputado; Enquanto o filme gera discussões, STF opta por avaliar a aplicação da Lei da Anistia em casos de ocultação de cadáver.
O longa-metragem “Ainda estou aqui”, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, resgata a luta da advogada Eunice Paiva para descobrir o que aconteceu com seu marido, o engenheiro e deputado federal cassado Rubens Paiva. No dia 20 de janeiro de 1971, no auge da repressão da ditadura militar, agentes do governo entraram na casa da família, na Praia do Leblon, na Zona Sul do Rio, e levaram o ex-parlamentar alegando que ele deveria apenas prestar depoimento. “Coisa de rotina”, disseram.
Só que a família Paiva nunca mais viu o engenheiro vivo ou morto. Hoje, sabemos que os militares torturaram Rubens até a morte e depois sumiram com o corpo para não ter que responder pelo crime. Ninguém nunca foi punido. Agora, entretanto, 54 anos depois, um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) pode, finalmente, responsabilizar não só os algozes do ex-deputado, mas todos os agentes da ditadura que ocultaram os cadáveres de suas vítimas (leia mais no fim do texto).
Grande parte dos mortos da ditadura tiveram seus corpos ocultados. Com o fim do regime, em 1985, essas evidências começaram a aparecer. Em 1990, por exemplo, uma investigação do jornalista Caco Barcellos, da TV Globo, que estava realizando pesquisas para seu livro “Rota 66: A história da polícia que mata”, revelou uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus, em São Paulo, com 1.049 sacos cheios de ossadas de pessoas mortas durante o governo dos generais.
O cemitério clandestino gerou comoção nacional e ficou conhecido como a Vala de Perus. Depois de desenterrado, todo o material achado foi enviado para análise, mas diversos problemas ao longo dos anos atrasaram muito a conclusão desse trabalho, que só foi dada como finalizada em 2018. Entre restos mortais de moradores de rua e vítimas de violência policial enterrados de maneira ilegal, foram identificadas cinco ossadas de militantes considerados desaparecidos políticos.
Já em 1996, uma reportagem do Jornal O GLOBO expôs a existência de cemitérios clandestinos em Xambioá, no Tocantins, onde estavam os corpos de membros da Guerrilha do Araguaia. Iniciativa do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para fomentar a revolução socialista no país a partir do campo, a guerrilha foi dizimada pelo Exército em diferentes operações de 1972 a 1974. A maioria dos militantes foi morta em combate ou executada. Dezenas são considerados desaparecidos políticos até hoje.
De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, constituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, há mais de 200 desaparecidos políticos da ditadura no Brasil. São vítimas como Stuart Angel Jones. Filho da estilista Zuzu Angel e membro da luta armada, o estudante tinha 25 anos quando, em junho de 1971, foi assassinado na Base Aérea do Galeão, no Rio. Segundo uma testemunha, durante a sessão de tortura, os militares chegaram a colocar a boca de Stuart no escapamento de um carro ligado.
Corpo de Rubens Paiva foi descartado três vezes
O cadáver de Rubens Paiva também nunca foi localizado. Depois de levado de sua casa em janeiro de 1971, ele foi assassinado durante uma sessão de tortura no quartel do Exército situado na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Os militares, no entanto, esconderam o corpo do engenheiro e inventaram uma versão “oficial” segundo a qual o ex-deputado havia sido “resgatado” por um grupo “terrorista” enquanto estava sendo conduzido pelos agentes em um carro no Alto da Boa Vista.
Em 2014, uma reportagem do GLOBO baseada no depoimento de um coronel reformado revelou o que foi feito com os restos mortais do marido de Eunice. De acordo com o militar, que falou ao jornal sob a condição de anonimato, o ex-deputado foi enterrado, primeiramente, em um terreno baldio no Alto da Boa Vista. Pouco depois, foi levado de lá e sepultado na Praia do Recreio dos Bandeirantes porque os agentes temiam que as obras de um empreendimento imobiliário descobrissem o corpo.
Ainda de acordo com o coronel, ele mesmo comandou, em 1973, a equipe que desenterrou o cadáver de Rubens Paiva da praia do Recreio. Em sua descrição, eram 15 agentes que, disfarçados de turistas, passaram 15 dias abrindo buracos na areia até achar o corpo ensacado. “De lá, seguiu de caminhão até o Iate Clube, foi embarcado numa lancha e lançado no mar”, disse ele. “Estudamos o movimento das correntes e sabíamos o momento certo em que o cadáver iria ser levado para o oceano”.
A informação foi mantida em segredo por décadas. Em 1987, a Polícia Civil chegou a realizar buscas em trechos da Praia do Recreio, após uma denúncia anônima afirmar que o corpo do ex-deputado continuava enterrado naquela faixa de areia. Mas, obviamente, nada foi encontrado.
Desde a reta final da ditadura, os militares acusados de tortura e morte de opositores foram poupados de punição graças à Lei da Anistia, que garantiu indulto a todos que cometeram crimes políticos e relacionados até o ano de 1979, quando a lei foi sancionada pelo então general João Figueiredo, o último presidente do regime. Agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruça sobre ações que podem, finalmente, responsabilizar os agentes envolvidos nas atrocidades do governo militar.