Diante das radicais mudanças climáticas atingindo o Brasil em todas as suas regiões, principalmente no Estado do Rio Grande Do Sul, com o registro de quase 200 mortes, a jornalista Miriam Leitão faz um reflexão sobre o papel do agronegócio na economia do país e o que o setor pretende apostando numa agenda atrasada de destruição da legislação ambiental.
Segundo a especialista em economia e meio ambiente, o agronegócio brasileiro “precisa escolher a sua face real”.
Leiam o artigo da jornalista:
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A dupla face do agronegócio
Moderno na implantação de tecnologias, agronegócio se mantém arcaico na agenda da destruição da legislação ambiental
Imagine um mundo em que produtores rurais não tenham que se preocupar se o agrotóxico afeta a vida humana ou o meio ambiente. Um mundo no qual tudo o que não for floresta pode ser derrubado e, mesmo nas florestas, será possível avançar mais, mudando as leis.
Em que campos nativos, como o pampa gaúcho, não tenham proteção. Nesse mundo, os indígenas só poderão requerer territórios nos quais estavam no dia 5 de outubro de 1988, e inclusive os isolados terão que provar onde estavam naquela data.
E quem invadiu terra pública até 2014 pode ficar tranquilo porque seu crime será perdoado. Aliás, deve continuar invadindo porque haverá novas anistias.
A bancada que representa os interesses do agronegócio está avançando bem na construção desse mundo distópico.
Na quinta-feira, ela comemorou mais uma vitória sobre o governo porque derrubou os vetos do presidente Lula a trechos da Lei do Veneno. Os agrotóxicos, agora, serão liberados pelo Ministério da Agricultura.
O Ministério do Meio Ambiente e a Anvisa passam a ser subsidiários. A licença para o produto será decidida pela perspectiva do produtor, sem preocupação com o meio ambiente ou a saúde humana.
Imagine um mundo em que os donos de fazenda, pecuaristas e produtores de grão adotam alta tecnologia de produção, como drones, melhoramento genético e sexagem, imagem e comunicação por satélite, sensores para controle dos parâmetros da produção, robôs, inteligência artificial e câmeras 3D.
Com o auxilio da tecnologia eles aumentam a produtividade ano após ano e elevam a produção e exportação do país.
O mundo da adoção da alta tecnologia existe e, por isso, o setor do agronegócio é o mais dinâmico da economia brasileira. O que está derrubando barreiras ambientais e o princípio da precaução também existe. E tem uma agenda de 25 projetos de lei e três emendas constitucionais tramitando no Congresso.
O difícil é conciliar as duas faces do agronegócio. De um lado, métodos de produção ultramodernos, jovens que vão estudar no exterior para renovar os empreendimentos familiares com novos modelos de gestão, startups que implantam técnicas sofisticadas de controle da produção.
De outro, ruralistas que levam uma pauta no Congresso que nega todos os alertas da ciência sobre a mudança climática. É missão impossível achar coerência entre o agro moderno e tecnológico e o agro da pauta retrógrada e negacionista.
O agronegócio aposta na ciência da computação, na biogenética, na comunicação por satélite para aumentar a eficiência da sua produção. O
s ruralistas negam a ciência do clima e seus alertas de que o desmatamento aumenta as emissões de gases do efeito estufa que estão provocando o aquecimento global. Não há separação entre um e outro. Estão juntos.
Alguém dirá que existe o lado bom do agronegócio que é contra toda essa pauta. Se existe, está em silêncio. Não combate a pauta da lavoura arcaica, não confronta seus métodos, não alerta que o ruralismo não o representa.
Como é possível a esta altura defender o descontrole de agrotóxicos cancerígenos e que contaminam os mananciais?
Como é possível que a esta altura das tragédias climáticas, que inunda o nosso Rio Grande do Sul e seca o nosso Rio Negro, defender as propostas que estão no Congresso?
O que querem os ruralistas? Querem, por exemplo, aprovar o PL 364/2019 que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais. Já foi aprovado na CCJ da Câmara.
O texto deixa desprotegidos 48 milhões de hectares em todo o país, o que, segundo o Observatório do Clima, ameaça 50% do Pantanal, 32% do Pampa gaúcho, 7% do Cerrado, e as áreas remanescentes da Mata Atlântica. Querem mais. O PL 3334/2023 reduz a reserva legal na Amazônia.
O PL 2374/2020 anistia desmatadores. Há projeto que restringe a necessidade de licenciamento ambiental, que ataca áreas de preservação permanente, que anistia grileiros, diminui o financiamento de órgãos ambientais, muda o Fundo Amazônia, delega ao Congresso a demarcação das terras indígenas, permite exploração mineral em unidades de conservação, encolhe o tamanho de parques nacionais.
Quando o mundo sonhado pelos ruralistas no Congresso virar realidade, o agronegócio tecnológico será atingido. A questão é que a tragédia recairá sobre todos. O setor agropecuário brasileiro precisa escolher qual a sua verdadeira face. Nenhuma pessoa, nenhuma atividade econômica pode ser moderna pela metade. (Texto: Miriam Leitão – Foto: Reprodução)