Henrique Acker (correspondente internacional) – O cafajeste é quase uma personagem rodriguiana(1), tão comum na sociedade brasileira. Geralmente de classe média, pouca cultura e muita desconfiança de tudo e de todos, vive em contradição permanente.
A maior desgraça de um cafajeste é ser desmascarado. Por isso, mesmo quando há provas concretas de sua cafajestagem, ele encontra sempre desculpas para negar o óbvio. Afinal, quem não conhece ou conheceu um cafajeste?
Na vida o cafajeste tem duas personalidades: uma (aparente) de conduta ilibada, que pretende sustentar e exibir orgulhosamente para a sociedade, no trabalho e em casa, com a família; outra (verdadeira), fora de casa, praticando toda sorte de canalhices, que esconde ou omite por moralismo ou conveniência.
Autoritário, machista e puxa-saco
O cafajeste adora a autoridade, porque ela impõe um padrão de conduta que ele gostaria de ter, reprimindo a própria cafajestagem. Daí sua fixação em fardas, armas, disciplina, hierarquia castrense, que afirmam o lado da masculinidade na sociedade.
Trata sua mulher como rainha, geralmente a cercando de presentes e surpresas. É o preço que paga para se lambuzar de taras sexuais e exibir seu machismo com amantes fora de casa.
A filha é educada como princesinha, sempre cercada de cuidados, recato e restrições. Mas seu preferido mesmo é o filho, ao qual nada nega e a quem incentiva a ter a mesma conduta, para fazê-lo sua imagem e semelhança. O melhor ditado para isso é “escondam suas cabras porque o meu bode está solto”.
O cafajeste é implacável com os outros, mas compreensivo e tolerante com os seus. Está sempre pronto a justificar e acobertar as infrações dos mais “chegados”. Seus filhos e filhas não têm defeitos.
Normalmente, o cafajeste ocupa postos intermediários nas cadeias hierárquicas, o que lhe deixa sob pressão dos de baixo (com os quais simula concordar) e dos de cima (aos quais jura fidelidade). Mas quando alcança postos de comando, o cafajeste adora dar demonstrações de poder para enquadrar seus subordinados. E de puxa-saquismo, para adular seus superiores.
Dissimulado, transgressor, assediador e mentiroso
O cafajeste é capaz de ir à missa semanalmente, engolir hóstia e até confessar. Mas também pode ser fã e contribuir com pastores eletrônicos e suas seitas, admirando as pregações e comentários ultra conservadores.
A máxima do cafajeste é a lei e a ordem para todos, menos para mim e os meus. No dia-a-dia, volta e meia o cafajeste apela a pequenas demonstrações de poder, intimidando os outros, esgrimindo títulos e documentos (a velha carteirada): “Você sabe com quem está falando?” (2).
Dissimulação é a conduta preferida do cafajeste, desde que em favor dos seus interesses particulares e ideais de sociedade. Daí porque a falsidade é parte integrante de sua personalidade.
Aos amigos que lhe dão abertura, o cafajeste se regozija das transgressões familiares e não poupa detalhes quando fala de mulheres em reuniões e mesas de bar. É capaz de puxar esses assuntos com a maior naturalidade com um genro ou um filho casado. Afinal, “eles entendem, são homens como eu”.
O cafajeste inicia sua vida sexual bolinando empregadas domésticas, assediando meninas mais novas e mulheres mais humildes e a ele subordinadas no trabalho. São práticas que aprende dentro de casa, com o pai ou o irmão mais velho. Na rua, inventa “serão” para dar uma esticada ao prostíbulo. Quem o encontra nesses lugares nem o reconhece. Lá ele fica à vontade, como pinto no lixo.
O cafajeste não questiona ordens, não se insurge contra os de cima. Sobrevive no ambiente de mediocridade, no qual esgrime o seu “micropoder” (3). É ali que ele cresce, espezinhando o outro e muitas vezes usando de chantagem para conseguir o que quer.
A intriga e a mentira são práticas recorrentes do cafajeste. É no ambiente da desconfiança que ele planta ou estimula a semente da discórdia, apresentando como solução o autoritarismo e restrições ao convívio democrático.
Conservador, desinformado, preconceituoso e conspirador
Na política o cafajeste só pode ser conservador, reacionário. Afinal, ele defende os valores da família tradicional e das classes dominantes. Quando próximo a políticos, como cabo eleitoral, adora bajular e extrair pequenos favores dos que têm poder. Assim, também pode se passar por importante junto aos de baixo por ter algum contato com os de cima.
Sempre que pode veste-se de verde e amarelo, empunha uma bandeira nacional e vai às ruas para defender “Deus, pátria, família e liberdade”. Como não lê e em muitos casos não não interpreta o que lê, o cafajeste se “informa” pelo grupo da família e dos amigos, através de matérias falsas (fake news).
Xinga, grita e não poupa críticas aos políticos, servidores públicos concursados e magistrados, mas admite e justifica as transgressões (ainda que evidentes) de seus políticos de estimação. Detesta pagar impostos, mas adora elogiar os “empreendedores” da iniciativa privada e detratar o Estado e os serviços públicos.
É fascinado pelo poder de polícia, pela necessidade de punir os pequenos infratores, mas não se incomoda com os grandes. Aliás, os admira. Se pudesse e estivesse em altos postos de mando “faria o mesmo”, como admitem alguns. O lucro, a agiotagem e a exploração dos de baixo não os incomoda. O que o tira do sério é a “vagabundagem”, a orientação sexual dos outros e os direitos humanos.
Conspirar é outra característica típica do cafajeste. Normalmente em situações que precisa burlar a lei e sabotar os interesses da sociedade, o cafajeste se cerca dos mais próximos para usar de expedientes ilegais e impor seus interesses imediatos, de sua casta e dos poderosos. Cientes de sua condição, os cafajestes chegam a combinar álibis que os inocentem, caso sejam apanhados em flagrante delito.
O cafajeste tem comportamentos que beiram as taras, como o cinismo, o sadismo e a mitomania (mania de mentir). Daí porque pode surpreender pelo bom desempenho quando defrontado com situações que o coloquem em condições de subjugar outro ser humano, como no caso da tortura.
Faltam os financiadores e beneficiários da cafajestagem
Foi esse tipo de gente que ascendeu ao poder no Brasil, com Jair Bolsonaro, em 2018. Seus apoiadores diretos – milicianos, ressentidos com a democracia, saudosos da ditadura, tios do churrasco, policiais, tias da igreja, pastores neopentecostais, etc – promoveram-no a “mito”.
Bom que se diga, parte importante do grande capital (agronegócio e o sistema financeiro) apoiou os cafajestes. E foi regiamente recompensado por eles, não só com medidas legais – como a Reforma da Previdência – como econômicas. Basta lembrar do R$1,2 bilhão que Paulo Guedes deu de bandeja aos banqueiros, para compensar possíveis perdas durante a pandemia.
Pressentindo a derrota eleitoral que viria em 2022, o “mito” e todo o seu staff de militares frotistas (4) decidiu montar uma operação para desmoralizar a eleição e virar a mesa. Tinham tanta certeza de sua impunidade que não tomaram os cuidados necessários para acobertar a conspiração golpista.
Agora, desmascarado pelas imagens de uma reunião conspiratória e uma troca de mensagens para financiar a viagem dos que promoveram o quebra-quebra em Brasília (8 de janeiro/2023), o grupo palaciano dos cafajestes parece desnorteado. Quem sabe finalmente estejamos diante do primeiro acerto de contas da sociedade brasileira com os cafajestes? Falta chegar aos que financiaram e se beneficiaram daquele governo.
Henrique Acker (correspondente internacional)
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(1) Nelson Rodrigues – escritor e jornalista brasileiro, autor de inúmeras crônicas publicadas em forma de livro, como “A vida como ela é”.
(2) Frase popular, alvo de análise pelo antropólogo Roberto da Matta , em seu livro “Carnavais, Malandros e Heróis”.
(3) Expressão usada por Michel Foucault em seu livro “Microfísica do poder” para definir o pequeno poder ou o poder exercido na vida cotidiana.
(4) Que se refere ao general Sílvio Frota, principal representante da linha dura do Exército, que não aceitou a transição “lenta e gradual” da ditadura militar para a democracia no Brasil. (Foto: charge/MoisesPC)