O aborto entre os povos indígenas

Por Moisés B. de Barros Neto

 

Sob a perspectiva de um olhar breve sobre o histórico do aborto no mundo, e, no Brasil, em particular, necessário tecer uma reflexão à luz da perspectiva fenomenológico-existencial no sentido de fenômeno presente na vida e no cotidiano de algumas mulheres e uma possibilidade entre as várias que permeiam a existência da mulher.

A prática do aborto é antiga e conhecida em todas as épocas e culturas, tendo um sentido e significado específico em cada uma delas. O abordo foi exercido por todos os grupos humanos até hoje conhecidos, embora grupos possuam concepções, motivações e técnicas abortivas completamente diferentes. Há registro de que o aborto acontecia desde a Antiguidade, havendo menções a ele no Código de Hamnurabi, criado pela civilização babilônica no século V antes de Cristo. Neste Código o aborto era referido como crime praticado por terceiro, e caso a prática abortiva resultasse na morte da gestante, o alvo da pena era o filho do agressor. O Código Hitita, criado no século XIV antes de Cristo, também considerava crime o aborto praticado por terceiros, sendo a pessoa punida com uma pena pecuniária, cujo valor dependia da idade do feto.

Existem, igualmente menções ao aborto nos escritos egípcios sobre contracepção que datam de 1850 a 1550 a.C., nos quais se falava de receitas com ervas cujas propriedades químicas, descobertas com a ciência moderna, poderiam ser contraceptivas ou causar à mulher aborto e infertilidade. De modo geral, os povos antigos – como assírios, os sumérios e os babilônicos – possuíam leis que proibiam o aborto por razões de interesse social, político e econômico.

Na Grécia Antiga o aborto era realizado como forma de limitar o crescimento populacional e mantê-la estável. Era uma prática bastante utilizada pelas prostitutas e defendida pelos principais pensadores da época, como Platão e Aristóteles. Apesar de as civilizações grega e romana permitirem o aborto, este poderia ser considerado crime quando ferisse o direito de propriedade do pai sobre um potencial herdeiro. Isso acontecia porque tais civilizações eram patriarcais e o homem detinha poder absoluto sobre a família e precisava de um herdeiro para sucedê-lo no Poder. Nesse sentido o aborto era considerado crime devido a um interesse político, não havendo referência ao direito do feto à vida.

Já entre alguns povos indígenas o aborto tem um sentido diferente de contracepção ou de interesses políticos e econômicos. Em algumas tribos da América do Sul o aborto acontece em função da maternidade, isto é, todas as mulheres grávidas de seu primeiro filho abortam para facilitar o parto do segundo filho. Em outros povos aborta-se por se considerar o feto endemoninhado, por mulheres jovens terem engravidado antes de serem iniciadas e também por fatores ligados à condição do pai – quando o bebê tem muitos pais, quando opai for parente ou estrangeiro ou quando o pai morre -.  Além disso, pode acontecer também devido `impossibilidade de se seguir o grupo nômade ou pela escassez de alimentos.

Com o advento do cristianismo o aborto passou a ser definitivamente condenado. Apesar disso, no século XIV, com as ideias de São Thomás de Aquino de que o feto não teria alma, ocorreu uma maior tolerância da Igreja quanto a essa questão. Na própria Bíblia não existe uma referência direta ao aborto, a não ser em caso de adultério ou aborto acidental. Na verdade, a Bíblia faz referência aos costumes judaicos sobre o direito de defender a honra e a dignidade. Desse modo, se o homem suspeitasse que sua mulher fosse infiel deveria levá-la a um sacerdote, o qual será instruído a dar-lhe a água amarga da maldição, como ciado em Números 5:27-28: ‘Se ela se contaminou e foi infiel ao seu marido, logo que a água amarga da maldição entrar nela, seu ventre ficará inchado, seu sexo murchará, e a mulher ficará maldita entre os seus. Se a mulher não se contaminou, se estiver pura, não sofrerá dano e poderá conceber.’

Ou seja, se a mulher abortasse ao beber a água amarga ela seria culpada de adultério, o que é contraditório, na medida em que se condena o aborto, mas utiliza-se de um método abortivo para julgar uma possível mulher infiel.

A outra citação bíblica que diz respeito ao aborto está em Êxodo 21:22-25 quando fala de ferimentos não mortais: ‘Numa briga entre homens, se um deles ferir uma mulher grávida e for causa de aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar aquilo que o marido dela exigir, e pagará o que os juízes decidirem. Contudo, se houver dano grave, então pagará vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.’ O que é também uma referência ao Código de Talião.

Mas foi somente em 1869 que a Igreja Católica declarou que o feto possui alma, e por isso passou a condenar o aborto e os métodos contraceptivos.

Assim, nos parece que, no que diz respeito a questão indígena, que é, evidente e supremamente de raiz cultural, somando-se ao fato de que, pela lei brasileira os povos indígenas possuem especial condição e proteção da legislação, posto que são considerados tutelados, a decisão judicial vigente não terá maior influência e prevalência para vida desses povos.

(Foto: Douglas Freitas/Las Derivas)

 

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