O futuro governo do presidente eleito Luiz Lula da Silva enfrentará desafios portentosos para conseguir a retomada do crescimento sustentável da economia, objetivando oferecer melhorias nas condições de vida do povo.
O Brasil que saiu das eleições de 2022 tem desafios que precisam ser enfrentados com assertividade para que seja retomado o crescimento sustentável e de forma a melhorar as condições de vida da população.
A diferença de apenas 2,1 milhões de votos que elegeu Lula presidente da República (com o adversário tendo conquistado 49,1% dos votos válidos no segundo turno); a composição predominantemente conservadora e neoliberal do Congresso Nacional; o aparelhamento e apoio ideológico de parcelas majoritárias do aparato repressivo do Estado (das Forças Armadas às polícias estaduais e guardas municipais, passando pelas polícias sob jurisdição do governo federal) e a persistência de oposição de extrema direita armada, mobilizada e financiada, sinalizam os tempos tumultuados que devem seguir como realidade política daqui por diante.
Por outro lado, a campanha eleitoral que elegeu Lula foi impulsionada por ampla e plural mobilização popular, com destacado papel dos comitês organizados por movimentos sociais e pelo movimento sindical, em todo o país.
Como talvez nunca tenha ocorrido, no segundo turno, o movimento sindical foi unânime no apoio à candidatura Lula.
Notadamente na reta final da campanha, foi decisivo o papel do sindicalismo na denúncia de milhares de casos de assédio moral de empregadores contra trabalhadores, na conquista de passe livre no transporte urbano de ônibus, ações que conseguiram, afinal, derrotar o uso da máquina do Estado a favor de uma candidatura à reeleição de forma jamais vista no Brasil no período pós-redemocratização.
Os grupos técnicos temáticos formados após a vitória eleitoral para reconstrução das políticas, em especial, as sociais, podem se prolongar por todo o mandato, até 2026, reforçando que será um governo de frente ampla.
Garantir condições orçamentárias mínimas
Dada a magnitude do que será preciso recompor (do orçamento da União ao desenho e implementação de políticas públicas), é de se esperar que os próximos quatro anos possam significar também necessária reconfiguração do governo federal, no sentido de ampliação da participação popular, inovação nas políticas de educação, saúde, incentivos à atividade produtiva e ao consumo, em bases cooperativas e solidárias.
De forma a garantir condições orçamentárias mínimas para a execução das principais políticas públicas sociais em 2023, o foco da transição tem sido a negociação de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) à Lei Orçamentária, a fim de se obter recursos para o pagamento das transferências de renda no valor de R$ 600,00, com complementação de R$ 150,00 por criança até seis anos de idade, sem a restrição do chamado “teto de gastos”, em vigor desde o governo Temer.
Não deixa de ser curioso que o objetivo da “PEC da transição” seja assegurar ao Bolsa-Família o mesmo princípio garantido na Constituição Federal às despesas financeiras (pagamento de juros e amortizações da dívida pública) da União, ou seja, que não haja restrição de teto aos valores usados para pagamento do benefício.
A realidade tem confirmado que o teto de gastos não funciona. Mesmo esvaziando todas as políticas sociais e de investimento em habitação e saneamento, o atual governo ultrapassou o teto de gastos em mais de R$ 800 bilhões nos quatro anos em que vigora. E, no debate em curso, envolvendo o gabinete de transição, o “mercado” e sua caixa de ressonância midiática pressionam pela manutenção desse teto. O orçamento público não é neutro. Decisões sobre a arrecadação e os gastos que serão feitos são escolhas políticas.
O presidente eleito afirmou que a responsabilidade fiscal é um compromisso, mas não às custas dos mais pobres e da responsabilidade social. Nesse sentido, é preciso rever todas as políticas e o arcabouço fiscal, incluindo a situação dos pobres e dos trabalhadores no orçamento, com cobrança de impostos dos mais ricos para financiar as políticas de desenvolvimento.
Cenário externo recessivo
A economia mundial registra perda de dinamismo, em 2022, devido aos efeitos negativos da guerra na Ucrânia, à desaceleração na China e à elevação das taxas de juros em muitos países, visando conter a escalada inflacionária.
No último cenário desenhado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), divulgado em outubro, a estimativa de expansão do PIB (Produto Interno Bruto) global para esse ano será praticamente a metade da verificada em 2021, enquanto 2023 deve ser marcado por uma evolução ainda mais fraca.
Espera-se que cerca de 43% dos países registrem recessão técnica, isto é, dois trimestres seguidos com queda do PIB, até o final do próximo ano, o que representa 1/3 do PIB global sob esse risco.
O cenário básico do FMI prevê expressiva desaceleração da economia global, com as projeções do PIB mundial – que cresceu 6,1%, em 2021, sobre a base rebaixada de 2020 – caindo para 3,2%, em 2022, e para 2,7%, em 2023.
Na última revisão, embora o crescimento esperado para 2022 tenha se mantido o mesmo do cenário divulgado em julho, a projeção para 2023 recuou 0,2 ponto percentual. Assim, o desempenho econômico global ficará bem abaixo da média do período 2000-2021, que foi de 3,6% ao ano.
O comércio mundial, que cresceu 10,1% em 2021, não deve passar de 2,5% em 2023. Isso se deve basicamente a dificuldades nas três maiores economias do mundo (Estados Unidos, China e área do euro), devido à materialização de riscos identificados anteriormente pelo FMI: deterioração das condições financeiras globais, por causa de expectativas de elevações mais expressivas, pelos bancos centrais, das taxas de juros básicas, com vistas a conter a inflação; maior desaceleração da economia chinesa, devido à política de covid-19 zero e ao agravamento da crise no setor imobiliário chinês; impacto adverso da guerra na Ucrânia, devido à forte redução na oferta de gás natural da Rússia para a Europa, inclusive com risco significativo de recessão nos principais países do continente.
Projeção de PIB
A América Latina e o Caribe devem desacelerar de 6,9%, em 2021, para 3,5%, em 2022, e 1,7%, em 2023, devido, sobretudo, às duas principais economias da região, Brasil e México.
Para o Brasil, o Fundo aumentou em 1,1 ponto percentual a projeção do PIB de 2022, para 2,8%, mas reduziu a de 2023 para 1,0%, resultados que ficam abaixo do PIB mundial e da média dos países chamados emergentes. Ou seja, no próximo ano, o dinamismo da economia brasileira deve ser de apenas 1/3 do ritmo de 2022.
Para o México, a desaceleração também deve ser importante, mas não tão forte como a do Brasil, passando de 2,1%, em 2022, para pouco mais da metade disso em 2023: 1,2%.
O FMI aponta oito fatores de riscos que, caso se materializem, podem deprimir ainda mais o crescimento global e manter a inflação alta por mais tempo: possíveis erros na calibragem da política monetária; trajetórias divergentes das políticas monetárias nas economias avançadas e manutenção do dólar forte; persistência da inflação; crises de dívida em economias emergentes vulneráveis; interrupção da oferta de gás russo para a Europa; surgimento de novas variantes de covid-19; e fragmentação da economia global, dificultando a cooperação internacional.
Para recolocar a economia global numa trajetória de baixa inflação e crescimento sustentável e inclusivo, o FMI recomenda um conjunto de iniciativas de políticas com impacto imediato, no médio e no longo prazo, entre as quais: prioridade do combate à inflação; proteção da população mais vulnerável; afastamento dos riscos de retorno da pandemia; medidas preventivas para enfrentar condições financeiras mais restritivas, incluindo medidas de gestão dos fluxos de capitais; políticas climáticas e fortalecimento da cooperação internacional. Essa agenda corresponde ao que o gabinete de transição indica priorizar no Brasil e vai além, ao propor controle de entrada e saída de capitais3, medida necessária para uma economia crescentemente dependente, como a brasileira.
Rescaldo eleitoral de uma economia em desaceleração
O setor de serviços, no Brasil, foi o que apresentou os melhores indicadores ao longo de 2022. Apoiado pela retomada da mobilidade das pessoas e das atividades presenciais, possibilitadas pelo avanço da cobertura vacinal contra a covid-19, além do atendimento à demanda reprimida durante a pandemia, o setor é o único com crescimento, entre janeiro e setembro.
O faturamento real desse segmento acumulou alta de 8,6%, entre janeiro e setembro, em relação ao mesmo período anterior, e no terceiro trimestre, o dinamismo se mostrou estável. Já a indústria só recentemente deu sinais positivos, por enquanto, insuficientes para compensar as perdas na primeira metade do ano.
O segmento, porém, acumula perda (-1,1%) nos nove primeiros meses de 2022, mesmo com o retorno ao crescimento no terceiro trimestre.
O comércio varejista patinou, prejudicado pela inflação, alta dos juros, queda dos rendimentos e desemprego remanescente. O resultado final foi de piora no último trimestre. Em setembro de 2022, o recuo da produção industrial foi difundido não apenas do ponto de vista setorial, mas também regionalmente.
Os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram perdas em 80% dos parques industriais regionais. Metade desses parques sofre com pelo menos dois meses seguidos sem crescimento. Ou seja, ao fim do terceiro trimestre do ano, o cenário é de dinamismo industrial bastante insatisfatório.
A indústria de São Paulo, a mais complexa e integrada do país, registrou queda quase cinco vezes maior que a do total Brasil, em setembro: -3,3% diante de -0,7% dos demais estados, com ajuste sazonal. Também no vermelho ficaram os estados do Sul e aqueles com ramo extrativo importante, como Pará, Minas Gerais e Espírito Santo. A exceção coube ao Nordeste, cuja indústria cresceu 0,6%.
Os principais fatores que impedem dinamismo industrial mais robusto são o nível elevado das taxas de juros, que prejudica as condições de crédito, essencial para os mercados de bens duráveis, e os remanescentes gargalos das cadeias produtivas, decorrentes da pandemia e da desindustrialização estrutural no Brasil. Indicador desse processo é a forte queda na produção de bens de capital para a própria indústria, que já acumula cinco trimestres seguidos de recuo: no terceiro trimestre de 2022, em comparação com o mesmo período de 2021, a redução foi de -7,5%, sinalizando retração no investimento industrial.
Fome e pobreza exigem ação emergencial
Segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan)4, 40% dos domicílios brasileiros convivem com algum tipo de insegurança alimentar, o que representa cerca de 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país.
Cerca de 15% da população, equivalente a 33 milhões de pessoas, estão em situação de fome, das quais 14 milhões passaram a essa dramática condição em 2022.
Como afirma a pesquisa: “O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990”.
O aumento e a persistência da pobreza estão diretamente ligados à perda de rendimento e ao aumento do custo de vida verificados nos últimos meses. O valor da cesta básica, pesquisada pelo DIEESE, aumentou, em outubro, em 12 das 17 capitais pesquisadas. As altas mais expressivas ocorreram em Porto Alegre (3,3%), Campo Grande (3,1%) e Vitória (3,1%).
Porto Alegre foi a cidade onde o conjunto dos alimentos básicos apresentou o maior custo (R$ 768,82), seguida por São Paulo (R$ 762,20).
A comparação dos valores da cesta, entre outubro de 2022 e outubro de 2021, mostrou que todas as capitais tiveram alta de preço, com variações que oscilaram entre 5,4%, em Vitória, e 15,3%, em Salvador.
Em 11 delas, o aumento se situou na casa dos dois dígitos. Da mesma forma, em 2022, até outubro, o custo da cesta básica apresentou elevação em todas as cidades pesquisadas, com destaque para as variações acumuladas em Campo Grande (14,3%), Goiânia (13,1%) e Porto Alegre (12,5%).
Transitar já para um projeto de futuro
O grande desafio é o de organização de parâmetros mínimos para um governo que será de transição a alguma possibilidade de futuro, nos marcos estreitos de um gabinete de transição que espelha a ampla frente de forças sociais, econômicas e políticas reunidas para derrotar o projeto antidemocrático do governo que está de saída.
A vitória do novo governo talvez seja o primeiro passo para enfrentar, com criatividade e força popular, o avanço da crise, que gera persistente perda de dinamismo econômico, esgarçamento do tecido social e cria condições para o surgimento de formas bárbaras de sociabilidade, de corrosão da legitimidade do poder e – caso vivenciado de forma dramática no Brasil – para o ressurgimento de ideias nazifascistas.
O movimento sindical, os movimentos sociais e os partidos que se situam do centro à esquerda têm papel decisivo no momento atual.
A Agenda da Classe Trabalhadora, programa unitário com que as centrais sindicais atuaram na campanha eleitoral, contém elementos que, se implementados, podem fazer com que se abra um novo horizonte de ação política e, sobretudo, de reprodução da vida econômica e social no Brasil, em bases que permitam superar a desigualdade, o racismo, o machismo e toda forma de discriminação.
Será necessário a luta em todas as frentes, a partir dos locais de trabalho e dos locais de moradia, por respostas concretas aos problemas do povo e da classe trabalhadora.