Por Mauro Ferreira – Quando Xande de Pilares faz Gente (1977) desfilar na avenida com coro feminino, percussão quente e todo o brilho vislumbrado por Caetano Veloso na letra da música, em gravação que fecha o álbum em que o cantor carioca dá voz a dez músicas do compositor baiano, fica definitivamente reiterada a luminosidade do disco gravado em 2021 com produção musical e arranjos do percussionista Pretinho da Serrinha e lançado somente hoje, 4 de agosto de 2023, dois anos após o registro fonográfico.
Projetado como vocalista do Grupo Revelação na década de 1990, Xande está associado ao pagode dos anos 2000, década áurea do grupo do qual saiu em 2014 para seguir carreira solo que alcança outro patamar com a edição deste álbum Xande canta Caetano.
No calor dos pagodes, nem sempre ficou evidente a beleza da voz do artista. A rigor, Xande nunca cantou mesmo tão bem como neste disco em que traz o cancioneiro de Caetano para o universo do samba, mas vai além do pagode, sem cair na trivialidade das rodas em que tudo vira samba sem o mínimo de requinte harmônico.
Basta ouvir a interpretação da canção Luz do sol (1982) ou qualquer outra das nove músicas do disco. Além da força do canto, há sofisticação nos arranjos de Pretinho da Serrinha, como se percebe na abordagem de Qualquer coisa (1975) em ritmo de sambolero. A gravação é adornada pelo toque do bandolim de Hamilton de Holanda e, como se sabe, esse toque nunca é qualquer coisa.
Quando Alegria alegria (1967) marcha renovada no ritmo do ijexá – no toque do clarone de Dirce Leite, com os violões de Pedro Baby e Carlinhos Sete Cordas e com as vozes do quarteto feminino (Bettina Graziani, Dora Morelenbaum, Jussara Lourenço e Rachell Luz) recorrente no disco, além do arsenal percussivo de Pretinho da Serrinha – tem-se outro atestado do esplendor deste inesperado disco Xande canta Caetano.
Com exceção de Tigresa (1977), faixa tão cara ao cantor, mas sem um colorido realmente especial (em que pesem os metais tocados e arranjados por Diogo Gomes), há força estranha neste álbum que reitera o alto quilate do samba-choro Diamante verdadeiro (1978) – em cujo arranjo sobressaem as sete cordas de aço do violão de Rogério Caetano – e que mostra o domínio vocal de Xande ao encarar O amor (Caetano Veloso e Ney Costa Santos sobre poema de Vladimir Maiakovski, 1981), tema composto para trilha sonora de encenação do texto russo O percevejo, mas efetivamente amplificado na gravação feita por Gal Costa (1945 – 2022) para o álbum Fantasia (1981).
E por falar em Gal, Xande cita com charme o canto da fase tropical da artista no verso “Gal cantando o balancê” da letra de Trilhos urbanos (1979), cujo arranjo transcendental também evoca o batuque do maculelê – ritmo mencionado na referida letra – na introdução antes de Trilhos urbanos seguir pela linha do samba entre citações de Retirantes (1976), música que Dorival Caymmi (1914 – 2008) fez para a trilha sonora da novela Gabriela (Globo, 1975), mas que acabou indo parar na trilha de Escrava Isaura (Globo, 1976).
Já Lua de São Jorge (1979) se ilumina desde a abertura em que se ouve o toque da alvorada do santo guerreiro no sopro do trompete de Diogo Gomes.
Recorrendo a versos de Muito romântico (1977), canção que Xande (como boa parte do Brasil) conheceu na voz de Roberto Carlos e que o sambista reapresenta no disco em arranjo de início calcado somente no cavaquinho do artista, a palavra cantada de Xande de Pilares pode espantar ou até parecer exótica na lógica de quem ergue muros entre o pagode e a MPB.
Para ouvidos livres de amarras estéticas, será fácil perceber a beleza que emana do álbum em que Xande de Pilares canta Caetano Veloso além do samba e, sim, dentro do samba. Até porque sem samba não dá… (Foto: Fernando Young / Divulgação)