A primeira vez em que fui “apresentado” a Pablo Milanés, eu morava no Rio de Janeiro, vivendo intensamente minha juventude.
Mais precisamente no bairro de Santa Teresa.
E foi lá, em um dos bares mais concorridos à época, o Armazém São Thiago (existe até hoje) , lá na Rua Áurea, que a canção de Milanés invadiu meus ouvidos pela primeira vez.
Estávamos ali quatro amigos tocando violão, atabaque e cavaquinho, quando chegou um irmão de um dos companheiros de mesa, levando à mão uma “bolacha”, como chamávamos o LP vinil, com a foto de Pablo – artista que eu nunca ouvira falar.
Parece que era o segundo disco dele gravado, “La vida no vale nada”, obra alinhada nos princípios da trova cubana e da Nueva Cancion Latinoamericana, movimento criado pelo próprio Pablo.
De cara, me apaixonei pelas canções “Yo pisaré las calles nuevamente”, que clama pelo retorno da democracia ao Chile, após o Golpe Militar de 1973; e “Canción por la Unidad Latinoamericana”, depois gravada também nas vozes de Chico e Milton Nascimento
Era o ano de 1976, e vivíamos o auge do enfrentamento da ditadura militar, conspirando nas mesas de bares.
O Armazém São Thiago já era um bar, depois de vivida a fase de secos e molhados, mas ainda era possível encontrar nas prateleiras do local grande variedade de produtos, a exemplo de azeites, vinhos, licores, enlatadas, ostras, lagosta, bacalhau, entre bebidas de todos os tipos.
Não lembro o nome do mano do amigo que chegou mostrando a novidade, mas ainda corre na memória uma expressão dele: -“Este aqui é um revolucionário da música cubana”.
Cuba simbolizava em todos nós a expressão de liberdade, de luta contra o imperialismo, e misturando Fidel Castro, jovens sonhadores e a canção de Pablo Milanés, estava completo o manual da luta poética contra os ditadores.
Dia seguinte, refeito do porre da noite/madrugada em Santa Teresa, bairro onde morei por dois anos, peguei o bondinho cruzando o Arco da Lapa e desci no centro do Rio, lá perto da sede da Petrobrás.
Caminhei mais algumas ruas até chegar numa loja de discos (sim, naquele tempo a gente podia se deliciar um tempo inteiro selecionando Lps, ouvindo faixas de cada um, até escolher o que dava gosto!).
Na prateleira, ao lado de discos dos Beatles, vislumbrei o que buscava: a “bolacha” do Pablo Milanés.
Uma, não. Duas.
Dois discos do cantor e compositor cubano: “Canta a Nicolás Guillén” e “La vida no vale nada”.
Como estava meio “duro”, segurando grana nas possibilidades possíveis, levei apenas o segundo, exatamente o álbum a nós apresentado na noite anterior em Santa Teresa.
Pablo Milanés sempre esteve em meus repertórios, porque ele é um músico de sensibilidade rara, não apenas explorando sua visão política do mundo, mas contribuindo musicalmente com uma obra monumental.
Ao longo de mais de 60 anos, a voz de Pablo imortalizou canções que formataram a trilha sonora da Revolução Cubana.
Em suas canções, ele gritava por liberdades, denunciava os regimes ditatoriais -, e cantava o amor.
Há declaração de amor mais profunda do que a que ele fez para a mulher, quando nasceu sua primeira filha, Lynn?
“Quando te vi
Eu bem que estava certo
De que me sentiria descoberto
A minha pele
Vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores de amores
Eternamente de amores”
A alma solidária de Milanés também se revelou na música, não apenas nas palestras e canções que fez pelo mundo saudando as democracias.
Gostava de conhecer novos talentos da música e das artes, firmando parcerias com compositores de outros países.
Chico Buarque foi um desses gênios das artes com quem Pablo consolidou obras maravilhosas – impulsionando a dimensão universal da sua música e a projeção da sua voz inconfundível.
Em tempos de manifestações bizarras nas ruas do Brasil, promovidas por pessoas pedindo a volta da ditadura, perder um defensor das liberdades como Milanés dá uma tristeza arrebatadora, empobrecendo a cultura dos povos libertários.
Foto de Milanés: Portugal Digital com Prensa Latin