Henrique Acker (correspondente internacional) – Num tempo em que o uso de tecnologia permite a captação de imagens, mesmo à noite, a mentira não sobrevive à realidade dos fatos. A morte de Odair Muniz, um cabo-verdeano de 43 anos, no bairro Cova da Moura, na Amadora (Grande Lisboa), foi consequência de uma abordagem policial desastrada.
Ao contrário do que a Polícia de Segurança Pública (PSP) comunicou sobre a ocorrência que levou ao óbito de Muniz, a vítima não ameaçou com uma faca o policial que disparou. O desmentido foi confirmado pela Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), a partir de uma fonte que teve acesso ao depoimento do próprio soldado da PSP à Justiça.
A morte de Odair Muniz provocou revoltas no Zambujal, Cova da Moura, Portela de Carnaxide e Santo Antonio dos Cavaleiros (Loures), bairros populares dos municípios da Grande Lisboa. Houve queima de ônibus e carros nas noites de 21, 22 e 23 de outubro. São áreas em que prevalece uma população pobre, com muitos imigrantes.
“Tolerância zero” para criminalizar as vítimas
A mesma polícia foi convocada para impor o que o primeiro-ministro chamou de “tolerância zero” com a violência. Além de ineficaz, a intervenção policial pouco adiantou, porque os protestos continuaram e se espalharam nas noites seguintes. Foram registradas 60 ocorrências nos concelhos de Lisboa, Amadora, Oeiras, Odivelas, Loures, Cascais, Sintra e Seixal. A maioria era de carros, caixotes e depósitos de lixo incendiados.
A extrema-direita ligou o sinal de alerta e levou o assunto para o Parlamento. O objetivo era defender as forças de segurança e criminalizar a revolta. O carro seria roubado e o motorista teria ameaçado o policial com uma arma branca. Foi o que seus discípulos difundiram nas redes sociais.
Na realidade, nem o carro era roubado e nem a vítima ameaçou o policial, como revelaram as imagens de uma câmera de vigilância. Segundo a PSP, Odair tinha uma faca dentro da bolsa. O agravante é que o soldado em questão tem apenas 20 anos e fazia patrulhamento com uma arma de fogo. Odair Muniz era cozinheiro e tinha um café na região.
Associação denuncia infiltração da extrema-direita na PSP
Não satisfeita com a morte, a polícia ainda foi à casa de Odair Muniz e arrombou a porta do apartamento, onde se juntavam parentes e amigos. Mónica, viúva de Odair, barrou os policiais empunhando a foto do marido e gritando aos agentes que queriam entrar “na casa de um homem que morreu”.
A associação SOS Racismo condenou a morte de Odair Moniz, apontando a vítima como mais um na “longa lista de pessoas negras mortas às mãos da polícia de segurança pública”, que “acontece num contexto político de exacerbação do discurso de ódio e de um securitarismo estigmatizante dirigido às comunidades negras“.
A SOS Racismo sublinha ainda que a PSP está “inegavelmente infiltrada pela extrema-direita racista”. A apuração do caso está a cargo do Ministério Público, com apoio da Polícia Judicial.
Por Henrique Acker (correspondente internacional)