Motivo da divergência aberta entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a taxação de investimentos de pessoas físicas por meio de empresas controladas no exterior (chamadas de offshore) sofreu alterações durante a tramitação na Câmara por iniciativa do Ministério da Fazenda. As mudanças ocorreram após contatos da equipe de Haddad com representantes do setor privado.
A tributação de fundos offshore foi inicialmente prevista em uma medida provisória (MP) editada em maio que tinha o objetivo de compensar o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda de R$ 1.900 para R$ 2.640.
Sem acordo político, no entanto, a medida caminhava para caducar; quando, então, o governo manobrou e incluiu o conteúdo dela em outra MP: a que reajustou o salário mínimo para R$ 1.320.
A manobra incomodou Lira e a cúpula do Congresso porque foi feita sem acordo prévio. Lira cogita retirar o conteúdo da MP do salário mínimo alegando “matéria estranha”, o que obriga o governo a elaborar uma alternativa, como o envio de um projeto de lei.
Mas o embarque clandestino na MP não foi o único movimento feito pela Fazenda na taxação das offshore. Em seu relatório, o deputado Merlong Solano (PT-PI) afirma que a equipe da Secretaria Especial da Reforma Tributária, comandada por Bernard Appy, fez interlocução “junto a especialistas do mercado financeiro, advogados e entidades que representam os contribuintes brasileiros diretamente afetados” e colheu sugestões. Algumas delas foram acatadas no texto, segundo o próprio deputado petista.
A reportagem apurou que um dos pleitos dos investidores foi a redução do sarrafo do enquadramento da tributação. O texto original da norma previa que, para entrar na nova tributação, bastava as empresas controladas por estes investidores terem mais do que 20% da renda advindas de atividades financeiras, como recebimento de royalties ou dividendos. Agora, para serem enquadradas, elas terão de ter pelo menos 40% em “renda passiva”.
Ainda assim, no caso de dividendos, se eles vierem de empresas que tenham resultado operacional no exterior (também não inferior a 60%), não serão contados para a formação da linha de corte para o enquadramento. Isso pode reduzir a base de contribuintes que poderão ser alvo da norma.
“O porcentual de 80% é alto; significava que praticamente ninguém iria se salvar da tributação”, afirma Renato Batiston, sócio da área tributária do escritório Cescon Barrieu.
Em um movimento oposto, a Fazenda incluiu no texto da Câmara uma regra que fecha a porta para que investidores com cotas em fundos de investimentos que tenham segregação de ativos escapem da tributação.
O entendimento inicial era de que, como não eram controladores dos fundos, esses investidores não seriam alcançados pela norma. A nova redação, patrocinada pela equipe de Haddad no relatório de Merlong, mudou isso.
Também por iniciativa da Fazenda foram incluídas obrigações sobre os trusts (um outro tipo de modelo usado para se investir no exterior). A incidência da tributação sai do investidor e passa automaticamente ao seu beneficiário, em caso de um trust irrevogável (em que a gestão não volta ao investidor inicial). Neste caso, o herdeiro já passa a ser taxado.
As modificações ilustram como a taxação das offshore foi influenciada pela equipe da Fazenda durante a tramitação na Câmara, sem que Lira e outros líderes da Casa se dessem conta. A estratégia irritou deputados, que agora prometem revidar derrubando a arrecadação. O problema, neste caso, é que a Fazenda perde a fonte de recursos para bancar a faixa mais elevada de isenção do Imposto de Renda.
Presidente da comissão mista que analisou a MP do salário mínimo, o senador Eduardo Gomes (PL-TO) afirma que os parlamentares petistas atuaram ativamente pela aprovação do relatório de Merlong. “Como o assunto é parte do discurso que atende à base ideológica do governo do PT, nem imaginei que isso ocorresse sem o conhecimento do governo”, disse.
Sobre o alegado desconhecimento do conteúdo pelos líderes da Câmara, Gomes arrisca que houve uma distração. “Não está tendo apagão de energia por aí? Creio que houve um apagão legislativo”, afirmou.
Dois pleitos do setor privado, no entanto, ficaram de fora da versão final da MP: o que prevê que os ganhos auferidos com a valorização de ativos, mesmo sem a realização da operação, sejam taxados; e o corte temporal que inicia a história da taxação em 2024, sem considerar eventuais prejuízos no passado. “Nestes casos, o governo está sendo duro e parece indicar que precisa e vai exigir a arrecadação”, disse Batiston. (Foto: Reprodução)