Depois de validar a legislação em 2010, com uma configuração diferente da atual, o tribunal irá decidir se o perdão para crimes cometidos durante a ditadura militar pode ser aplicado.
Com a aprovação da maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o tema seja debatido, a análise sobre a extensão da Lei da Anistia de 1979, especialmente em relação a crimes que se iniciaram durante a ditadura militar e que ainda perduram, como a ocultação de corpos, encontrará um tribunal bastante modificado em comparação ao que validou a constitucionalidade da lei em 2010. Desde então, somente três ministros ainda estão na Corte, sendo que um deles se considerou impedido.
Na terça-feira, o tribunal alcançou uma maioria que reconheceu a repercussão geral da questão. Os ministros do STF destacam que o debate em torno da tese proposta pelo ministro Flávio Dino, agora sob uma nova formação, polarizará as opiniões na Corte, e que qualquer veredicto será decidido por uma margem estreita. A análise sugere que o tema ainda toca em um ponto delicado no país, e que reabrir a discussão sobre a anistia exige prudência, considerando que o tribunal lida com pressões provenientes da direita e está sendo alvo de atenção devido à possibilidade de decisões que podem descontentar o Legislativo.
O assunto que gerou a discussão promovida por Dino foi trazido à tona pelo Ministério Público Federal (MPF), que está buscando a punição dos militares Lício Maciel e Sebastião Curió, conhecido como Major Curió, por homicídio qualificado e ocultação de cadáver durante a Guerrilha do Araguaia, durante a época da ditadura militar. Ao decidir sobre o caso, os ministros do STF irão avaliar um recurso com o objetivo de revogar a decisão de primeira instância que não aceitou a acusação do MPF contra os militares, fundamentando-se na interpretação do STF de 2010, que corroborou a eficácia da Lei de Anistia.
Após o reconhecimento da repercussão geral — com a decisão do julgamento agendada para sexta-feira —, Dino deverá ordenar a pausa de processos semelhantes até que o STF faça uma avaliação sobre o assunto em questão. Até agora, os ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Edson Fachin têm apoiado o relator.
Delito contínuo
Em dezembro, ao sugerir a discussão, Dino defendeu que a ocultação de cadáver ainda ocorre enquanto o local onde a vítima se encontra continua sem ser revelado, e destacou que a proposta não altera a decisão de 2010. “A discussão em torno deste recurso se restringe a esclarecer a aplicação da Lei de Anistia no contexto do crime contínuo de ocultação de cadáver”, explicou.
De acordo com o ministro, “a persistência da ocultação do local onde está o corpo, além de dificultar que os parentes possam passar pelo luto, caracteriza a prática criminosa, assim como uma situação de flagrante”. Ao destacar a importância e a relevância constitucional da questão, Dino mencionou o filme “Ainda estou aqui”, que retrata o sofrimento da família do ex-deputado Rubens Paiva, que foi morto pela ditadura em 1971 e cujo cadáver permanece desaparecido.
‘Ainda estamos aqui’
Somente três integrantes da composição atual do STF faziam parte da Corte em 2010, quando foi negada a reavaliação da Lei de Anistia: Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Naquele momento, a maioria dos ministros validou a constitucionalidade da lei, acompanhando o parecer do relator, Eros Grau, que atualmente está aposentado, incluindo Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Por outro lado, Toffoli se declarou impedido, pois na época era o chefe da Advocacia Geral da União (AGU) no momento em que a ação foi proposta.
Cármen Lúcia qualificou a legislação como um “autêntico acordo de paz de 1979” que possibilitou o retorno das eleições diretas para governadores, a escolha de Tancredo Neves e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. De forma semelhante, Gilmar Mendes afirmou que a anistia ampla, geral e irrestrita “simboliza um pacto constitucional que permitiu a criação e o desenvolvimento da ordem constitucional de 1988”.
— Não é possível avaliar o passado apenas com a perspectiva atual, ignorando as ações, as adaptações e os compromissos que foram feitos, resultando em efeitos que, em muitos casos, se esgotaram com o tempo — afirmou Cármen Lúcia, ao justificar sua posição.
Compreenda o que está sendo discutido.
Em 2010, o tribunal decidiu, com um placar de 7 a 2, pela validade da Lei de Anistia, aprovada em 1979, que absolveu crimes políticos cometidos durante o regime militar. A corte não aceitou um pedido da OAB que solicitava a revogação da anistia concedida a agentes do Estado acusados de torturas.
Questão em discussão no tribunal: O STF avaliará a legitimidade da aplicação da decisão de 2010 nos casos de ocultação de corpos. A maioria dos ministros já se posicionou a favor do reconhecimento da repercussão geral do tema, que envolve um caso relacionado ao sumiço de militantes durante a Guerrilha do Araguaia. O recurso visa à penalização de dois oficiais.
As variações na composição: Somente três ministros que faziam parte da Corte em 2010 durante a avaliação da Lei de Anistia continuam no STF: Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. A análise interna indica que a abordagem do assunto, com a inclusão de mais oito juízes, provocará divisões no plenário. (Foto: Reprodução)
Com dados do O Globo.