Jovens pretos e pobres são duas vezes mais abordados do que brancos e pardos, diz estudo da USP

Estudos indicam racismo estrutural no sistema prisional. Desde a infância, negros estão vulneráveis à abordagens violentas

 

Levantamento do Núcleo de Estudos da violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) aponta que crianças e adolescentes pretos têm duas vezes mais chances de serem parados e revistados por ações policiais, em comparação com brancos da mesma faixa etária. O estudo que o Opinião em Pauta teve acesso aos dados mais recentes mostra ainda que o grupo também tem mais possibilidades de responder que foi alvo do policiamento ostensivo e de formas mais intrusivas e violentas das polícias.

“Os brancos são muito menos parados [pela polícia] do que os pretos. O relatório chama a atenção para um debate fundamental de longo prazo, que é o da abordagem policial desproporcional por raça”, declara Renan Theodoro, responsável pelo estudo, juntamente as pesquisadoras Debora Piccirillo e Aline M. Gomes.

Segundo Theodoro, é importante destacar a singularidade do trabalho ao utilizar uma pesquisa do tipo survey com um público não adulto. “É a primeira vez que o NEV considera a opinião de pequenos cidadãos nesse tipo de estudo”, conta Theodoro, lembrando que a pesquisa começa em uma faixa etária em que são considerados crianças: aos 11 anos. “E nesta idade, eles já estão respondendo ‘sim, fui enquadrado'”. A pesquisa se insere no contexto do “Estudo de Socialização Legal em São Paulo”.

Os dados foram coletados pelo Estudo de Socialização Legal de São Paulo (SPLSS), que entrevistou cerca de 800 adolescentes matriculados em escolas públicas e privadas da cidade de São Paulo. Todos nasceram no ano de 2005 e tinham onze anos de idade quando foram entrevistados pela primeira vez em 2016. Os mesmos participantes responderam a um questionário com aproximadamente trinta questões uma vez por ano, entre 2016 e 2019.

Isso permitiu realizar um estudo longitudinal e observar mudanças de opinião, ideias e expectativas ao longo do tempo. A natureza do estudo também possibilitou investigar como essas mudanças estavam relacionadas às experiências de violência e vitimização que esses adolescentes enfrentaram em casa, na escola e em seus bairros.  O relatório aponta que muito cedo, já aos 11, 12 e 14 anos de idade, adolescentes pretos chegaram a ser duas vezes mais abordados pela polícia, mesmo sendo uma parcela significativamente menor de participantes da pesquisa.

No primeiro ano de levantamento, 47,13% dos participantes eram brancos, 27,25% eram pardos, 11,50% eram pretos, 5,13% indígenas, 2,75% eram descendentes de asiáticos e outros 6,25% não souberam ou não quiseram declarar. Apesar de não representarem a maior parcela de entrevistados, o contato com a polícia foi maior entre os jovens autodeclarados pretos. Em 2016, quando os jovens participantes tinham 11 anos de idade, 18,24% dos pretos foram parados pela polícia.

Para fins comparativos, entre todos os pretos participantes da pesquisa naquele ano, 27,47% foram parados pela polícia, contra 18,83% de brancos e, do total de pardos, 12,84% foram parados. Considerando todos os anos em que a pesquisa foi realizada, 68,82% dos participantes nunca foram parados pela polícia, 20,21% foram parados ao menos uma vez em um único ano, 5,40% parados ao menos uma vez em dois anos, 4,32% parados ao menos uma vez em três anos e 1,23% foi parado ao menos uma vez todos os anos, dos 11 aos 14 anos de idade.

De todos os pretos da amostra, 21,51% foram revistados pela polícia. Já entre os brancos, essa experiência atingiu 8,33%, e entre pardos, 9,74%. Somente no ano de 2016, adolescentes autodeclarados pretos foram 25,71% dos que afirmaram ter sido levados para a delegacia, frente a 11,37% de participação na amostra. Já no ano de 2019, somente 8 jovens responderam ter sido agredidos pela polícia, no entanto 7 eram negros.

“A gente sabe que a polícia tem abordagens diferentes a depender de questões como raça e cor, e isso é entrecruzado com a condição socioeconômica. É um estranhamento da nossa parte saber que a polícia chegaria a parar na rua uma criança de 10 a 11 anos”, afirma Theodoro. Para ele, a população está sendo exposta desde muito cedo à violência racial institucional.

Além do resultado da pesquisa com crianças e adolescentes, três ensaios compõem a parte final do relatório. Os dois primeiros ilustram como jovens representam as experiências vividas em seus contatos com a polícia e o modo como as polícias, em especial a militar, silenciam a presença do racismo em seus contatos com cidadãos e cidadãs. O terceiro ensaio aborda estratégias para interromper a violência contra crianças. De acordo com a publicação, a percepção de que há discriminação racial na ação policial foi presente em todos os grupos sociais: meninos e meninas, brancos, pretos e pardos.

Presídios

Mas não são apenas os moradores do estado mais rico do país que estão sujeitos a esse tipo de abordagem, a prática é observada em outras unidades da federação. O problema, conforme a pesquisa, é apenas a ponta do iceberg, diretamente relacionado ao perfil da população encarcerada no Brasil. As características de raça, gênero e perfil socioeconômico são refletidas no sistema prisional brasileiro. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, enquanto a população negra compõe quase 70% da comunidade carcerária, a parcela considerada não negra (brancos, amarelos e indígenas) representa apenas 30%. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou dados mostrando que, no país, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras.

De acordo com o levantamento, entre 2005 e 2022 houve crescimento de 215% da população branca encarcerada. No entanto, em números gerais, a parcela de brancos caiu de 39,8% para 30,4% entre os presos. Enquanto isso, entre os negros cresceu 381,3%, no mesmo período. Em 2005, 58,4% do total da população prisional era negra, em 2022, esse percentual foi de 68,2%, o maior da série histórica disponível. “O sistema penitenciário deixa evidente o racismo brasileiro de forma cada vez mais preponderante. A seletividade penal tem cor”, aponta o anuário. Ainda de acordo com a publicação, “o sistema prisional brasileiro escancara o racismo estrutural”.

Na avaliação da socióloga e pesquisadora do FBSP Betina Barros são vários os desafios que o país enfrenta quando o sistema prisional é analisado. Ela destaca que o racismo é um fenômeno que contribui para que o perfil da população carcerária seja composto por jovens negros, em sua maioria. “A gente sabe que muitas vezes o perfilamento racial é algo que faz com que a polícia foque na abordagem de determinadas pessoas. O local onde essa pessoa mora também faz com que a polícia possa estar com olhos mais atentos para essa região do que para outras. Quando você olha para a população prisional e vê que a maior parte são pessoas negras, não tem como dizer que as instituições não possuem, em alguma medida, um olhar racista quando elas atuam. Mas também faz parte de um racismo que passa pela desigualdade social”, explica Barros.

Outro dado que chama atenção diz respeito à faixa etária da população. Conforme a pesquisa, 62,6% das pessoas privadas de liberdade têm entre 18 a 34 anos. Ou seja, a população carcerária apresenta o mesmo perfil da grande maioria de vítimas de mortes violentas intencionais, como aponta o anuário. “Estamos diante dos atravessamentos do racismo estrutural que opera como um fator determinante na política prisional brasileira. Ou seja, o sistema de justiça tem reproduzido padrões discriminatórios, naturalizando a desigualdade racial.”

O inchaço do sistema prisional também é confirmado pelo levantamento. De 2021 para 2022, foi contabilizado aumento de 0,9% no número de pessoas privadas de liberdade, passando de 815.165, para 826.740. O relatório salienta que o Brasil continua enfrentando uma ausência importante de vagas nas penitenciárias. Especialistas ressaltam que a superlotação é um problema alarmante e repercute para o aumento da violação dos direitos humanos e o surgimento de facções criminosas. Os dados também revelam um excedente de 230.578 pessoas encarceradas, o que corresponde a quase 50% além de sua capacidade.

Já entre os presos provisórios, foi constatada redução. Em 2020, 30% das prisões eram provisórias; em 2021 houve queda para 28,5%; e em 2022 para 25,3%. A publicação aponta que o recuo pode estar relacionado a implementação das audiências de custódia, cujo marco inaugural data de 2015. Mesmo com a queda, há 210.687 pessoas encarceradas sem condenações.

(Foto: Bruno Itan)

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