Jamil Chade / Colunista do UOL – Qualquer ação em relação à Venezuela tem de ter como objetivo evitar uma guerra civil e uma intervenção norte-americana. O alerta é de José Dirceu, homem forte no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que, agora, costura um retorno ao cenário político nacional.
Em entrevista exclusiva ao UOL, ele falou sobre política externa, a crise na Venezuela, a situação russa, a China, uma possível vitória de Donald Trump e o futuro da ONU.
Para ele, “faltou diplomacia” na nota divulgada pelo Itamaraty na semana passada sobre a situação venezuelana. No texto, o governo se dizia preocupado com as medidas adotadas por Maduro contra a oposição, tendo em vista a eleição de julho. Caracas respondeu com duras acusações contra Brasília.
“Nós devemos adotar uma postura de defesa dos acordos de Barbados”, defendeu Dirceu, numa referência aos acordos entre a oposição e Maduro, fechados em outubro de 2023 e que estabeleciam as regras da eleição.
“Mas temos de tomar cuidado para que isso não se transforme numa intervenção nos assuntos internos da Venezuela. Precisamos preservar a não intervenção e impedir que haja uma diplomacia de troca de mensagens de condenação mútua. Isso não ajuda nem o processo democrático venezuelano e nem a relação com o Brasil”, disse.
Eis os principais trechos:
Existe a possibilidade de que o republicano Donald Trump seja eleito nos EUA. No passado, já vimos uma relação positiva entre outro republicano, George W. Bush, e Lula. O sr. acha que isso pode, de alguma forma, se repetir ou pelo menos evitar um confronto?
Os EUA têm interesses nacionais. O Brasil é uma potência em si. A China tem mais interesse no Brasil que os EUA. Obviamente, uma relação com o Trump não será fácil. Mas o Brasil tem condições de manter certa autonomia em relação às políticas de Trump. Com Bush, tivemos a guerra contra o terror, a situação do Iraque. E o Brasil nunca apoiou isso, teve uma postura autônoma.
No caso de Trump, ele pode alterar a política em relação aos venezuelanos. Houve uma tentativa de golpe a partir das sanções e uma guerra civil, o que explica muito do que está acontecendo hoje.
Lula saberá conduzir essa questão. Mas é um risco elevado para a democracia no mundo todo. Estamos vendo o fim de 300 anos de hegemonia dos EUA e da Europa no mundo. Isso é evidente —com China, Irã, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia. Há muito mais autonomia hoje no mundo.
Tivemos 183 conflitos internacionais nos últimos anos, sem arbitragem. Há uma crise de governança internacional. É necessária uma reforma da ONU. Há uma paralisia mundial, que fica muito clara a partir do que ocorre em Gaza. Condenamos os ataques do Hamas, mas o que estamos vendo hoje é a manutenção do status colonial, de apartheid, praticamente de eliminação do povo palestino.
Neste contexto, o Brasil não terá aliança com nenhum bloco ideológico. O Brasil tem condições de ter uma política externa própria.
Nessa guerra em Gaza, a credibilidade da ONU também foi soterrada?
Com a aprovação do último cessar-fogo, com abstenção norte-americana, parte dessa credibilidade foi restabelecida. Mas a questão vai muito além. Desde que os americanos decidiram invadir o Afeganistão e o Iraque e destruir a Líbia e a Síria, eles tentaram criar um modelo para superar o direito internacional.
E como avaliar a Ucrânia?
A Ucrânia é resultado disso. A Otan decidiu fazer a mesma coisa, cercando a Rússia, promovendo golpes de Estado na Geórgia, colocando mísseis na Polônia. Putin vinha avisando. Portanto, estamos vivendo um momento em que a ONU é praticamente substituída pela Otan e sua aliança com os EUA.
O sr. acha que Lula deve insistir que Putin esteja presente na reunião do G20?
Acho que sim. No Vietnã, não eram crimes de guerra? Essa instrumentalização da guerra na Ucrânia para tentar colocar a Rússia na ilegalidade e fora do sistema mundial é um erro —80% do sistema internacional não aceitará. Além disso, EUA e Europa não têm autoridade para isso. Olha o que os americanos fizeram na Líbia, destruíram um país.
Vamos voltar ao colonialismo e aceitar que alguns países decidam quem é democracia? Que decidam que país deve ser ocupado?
Mas a invasão da Ucrânia não é uma violação das regras da ONU por parte dos russos?
É, e nós brasileiros não podemos ter dúvidas sobre isso. Condenamos qualquer violação aos nossos princípios, que é a autodeterminação dos povos, não intervenção e solução pacífica dos conflitos. Mas, dizer que é um expansionismo russo que ameaça a Europa, não dá. É quase uma guerra de defesa, do ponto de vista histórico. Na verdade, os ucranianos tampouco cumpriram os acordos. Portanto, creio que Lula adotou uma postura correta.
Como devemos olhar para a China, como oportunidade ou ameaça?
A China não ameaça ninguém. Ela não manteve guerras com ninguém nos últimos 50 anos. A China se expande no mundo por seu desenvolvimento econômico e tecnológico e capacidade importadora e exportadora. É o que os EUA fizeram depois de 1945. Vejo a China como oportunidade, inclusive para o Brasil.
A China e o Vietnã deslancharam depois que as políticas de sanções e desestabilização foram encerradas. Não foi o que ocorreu com Cuba, que continua bloqueada.
Falando em sanções, vemos a Venezuela numa situação complicada. Qual sua avaliação?
Não podemos analisar a Venezuela sem examinar o que ocorreu desde a morte de Hugo Chávez. Foi o país que mais teve eleição nos últimos anos. Em 24 anos, foram 35 eleições. A oposição elegeu governadores e até maioria em uma das assembleias. Vamos lembrar que houve um processo de sanções. O país viu seu volume de receitas cair de US$ 57 bilhões para US$ 700 milhões. Empresas, reservas de ouro e reservas internacionais foram confiscadas. Zero alimentos e zero remédios. Capacidade de refinar cai. Isso não foi o chavismo —a crise humanitária é produto do bloqueio. E houve uma guerra civil depois que Maduro assumiu, financiada e articulada pelos EUA.
Muitos dos candidatos de oposição participaram disso, entre eles, Henrique Capriles, Leopoldo López e Corina Machado.
Nós devemos adotar uma postura de defesa dos acordos de Barbados. Mas temos de tomar cuidado para que isso não se transforme numa intervenção nos assuntos internos da Venezuela. Precisamos preservar a não intervenção e impedir que haja uma diplomacia de troca de mensagens de condenação mútua. Isso não ajuda nem o processo democrático venezuelano e nem a relação com o Brasil.
Precisamos voltar a conversar, à mesa de negociações, ao acordo de Barbados. Esse é o papel do Brasil.
Qual o motivo então do comunicado do governo brasileiro criticando a eleição?
No fundo, o Itamaraty aceitou que Maduro está colocando obstáculos que não são legais para evitar candidaturas. Quando Capriles, Lopez e Machado falam, precisamos lembrar que eles apoiaram tudo que os norte-americanos fizeram. A não ser que apoiamos isso. Seria um absurdo.
O mais irônico é que a importação de petróleo venezuelano pelos EUA aumentou 555% no primeiro trimestre de 2023. Depois, autorizaram a Chevron a explorar petróleo na Venezuela. Há um lado enorme de hipocrisia.
Como a Venezuela foi abastecida [com alimentos]? Por Roraima. O governo Bolsonaro dizia que apoiava as sanções norte-americanas, mas tudo passou por Roraima, com o Exército brasileiro de um lado.
Portanto, vamos fazer os acordos de Barbados serem cumpridos, mas vamos encontrar uma transição democrática. Não com declarações públicas como a que o Itamaraty fez.
No Brasil, assim como em outros países da região, a diferença entre o derrotado e o vitorioso numa eleição é pequena. Na Venezuela também. Maduro tem apoio popular, como a oposição também tem. Num quadro como esses, se tomarmos uma posição de que se trata de uma ditadura, sem levar em conta os fatos históricos, seria um erro. Não quer dizer que concordamos com tudo. Mas faltou diplomacia.
E qual então o caminho para o Brasil?
Nosso esforço é para que haja uma eleição e que ela ocorra dentro das condições venezuelanas democráticas. Não podemos desconsiderar que houve uma guerra civil e uma intervenção norte-americana. E esses candidatos foram instrumentos dessa intervenção.
Por qual motivo é importante uma estabilidade na Venezuela hoje?
Temos de evitar uma guerra civil na Venezuela e uma intervenção norte-americana.
E isso pode ocorrer?
Com o Trump, houve um momento em que isso estava na mesa, mas ocorreu uma mudança geopolítica no mundo. O que eu não posso aceitar é os norte-americanos condenarem a Venezuela, enquanto fecham acordos para explorar petróleo, e nós ficamos fora da Venezuela, um dos principais mercados de destino de nossas exportações. Há muita hipocrisia na política internacional.
Mas a ONU alertou que há uma repressão diante do processo eleitoral na Venezuela
Dizer que a Venezuela é uma ditadura e que a eleição é uma farsa vai ajudar ou não? Não. O que vai resolver são negociação e pressões internacionais para que haja um processo de
transição, de acordo com as condições da Venezuela. Onde está o ouro venezuelano? E suas reservas? Onde estão os milhões de dólares que a oposição recebeu?
Temos de fazer de tudo para que a oposição possa concorrer nas eleições. Não sei se a nota do Itamaraty ajudou. Tomara que tenha ajudado e que haja um acordo entre governo e oposição. (Foto: Reprodução)