Novo presidente do STF tem histórico de atuação em pautas de direitos sociais e deve impor um estilo diferente do de Rosa Weber. Em discurso de posse, Barroso defende aumento da presença de mulheres no alto escalão do Judiciário, prega pacificação, harmonia entre os poderes e valorização de minorias
Recém-empossado como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (28), o ministro Luís Roberto Barroso acena com a expectativa de trazer temas de direitos humanos e pautas ligadas à agenda progressista para apreciação da corte e implementar mudanças na forma de julgamento do tribunal. Além disso, há expectativa grande no meio jurídico de mudança do perfil da corte, que estava sob o comando da ministra Rosa Weber, a mais discreta do tribunal, desde o ano passado.
Diferente de Rosa, que é avessa a entrevistas e, por vezes, não externava suas posições nem mesmo para os integrantes de seu gabinete, Barroso se notabilizou por seu perfil midiático e disposto a participar de debates e eventos públicos de diferentes tipos com empresários e outras autoridades do Brasil e do exterior. Em um dos mais recentes, em julho deste ano, ele chegou a afirmar que “nós derrotamos o bolsonarismo” durante a abertura do 59º Congresso da União Nacional dos Estudantes.
A fala repercutiu mal em um momento em que estão para serem julgados pelo Supremo vários processos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro, e o ministro chegou a telefonar para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para se desculpar e divulgou uma nota oficial depois se explicando. Em outra ocasião, ele chegou a responder um manifestante bolsonarista que o abordou na rua em uma viagem para Nova York e disse “perdeu, mané, não amola” ao manifestante que o seguia.
A tendência é que Barroso não demore para voltar a pautar temas caros a Rosa Weber, que deixa a presidência e o tribunal nesta semana. O novo presidente do STF deve analisar e marcar para o próximo mês a continuidade dos julgamentos sobre a descriminalização do porte para uso da maconha e o aborto em até 12 semanas. O ministro também desponta interesse de amenizar a relação com o Legislativo.
Barroso tem boa relação com Lula, mas tentará marcar uma posição de separação com o presidente da República. Essa independência foi sinalizada em seu discurso de posse em que defendeu a democracia, a “pacificação de um país ainda dividido politicamente” e chegou a fazer uma menção ao papel dos militares durante o processo eleitoral mais recente. “Na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”, defendeu, citando logo depois que a democracia “venceu” e a necessidade de uma boa relação entre os Poderes. “A democracia venceu e precisamos trabalhar pela pacificação do país. Acabar com os antagonismos artificialmente criados para nos dividir. Um país não é feito de nós e eles. Somos um só povo, no pluralismo das ideias, como é próprio de uma sociedade livre e aberta”, disse. “Numa democracia, não há Poderes hegemônicos, garantindo a independência de cada um, presidente Arthur Lira, presidente Rodrigo Pacheco, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais que somos pelo bem do Brasil.”
O tom progressista se manteve. Ele defendeu o aumento da presença de mulheres e negros no alto escalão do Judiciário ao lado do presidente Lula, que afirmou nesta semana que não levará em conta “critérios de gênero e cor” para o preenchimento da vaga aberta de ministro do STF. Há uma pressão inclusive de governistas para a escolha de uma mulher negra, mas os principais cotados são os ministros Flávio Dino (Justiça), Jorge Messias (Advocacia-Geral da União) e o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas. “Precisamos aumentar a participação de mulheres nos tribunais com critérios de promoção que levem em conta a paridade de gênero e também aplicar a diversidade racial”, destacou Barroso.
Em seguida, o novo chefe do Poder Judiciário destacou decisões do Supremo em favor de minorias políticas, como mulheres, negros, a comunidade LGBTQIA+, povos indígenas e pessoas com deficiência. “Temos sido parceiros da ascensão das mulheres, na luta envolvente por igual respeito e consideração, no espaço público e no espaço privado, bem como contra a violência doméstica e sexual. Também temos atuado, sempre com base na Constituição, em favor do heroico esforço da população negra por reconhecimento e iguais oportunidades, validando as ações afirmativas, imprescindíveis para superar o racismo estrutural que a escravização e sua abolição sem inclusão acarretaram”, disse.
“Do mesmo modo, a comunidade LGBTQIA+ obteve neste Tribunal o reconhecimento de importantes direitos, com destaque para a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais. […] Povos indígenas passaram a ter a sua dignidade reconhecida, bem como o direito a preservarem sua cultura e, ao menos, uma parte de suas terras originárias. Atuamos, ainda, para que pessoas com deficiência sejam valorizadas na sua diferença, no esforço de se proporcionar acessibilidade e inclusão”, completou.
Ainda no primeiro discurso à frente do STF, Barroso negou que haja um “ativismo” por parte do Judiciário, acusação feita com frequência por uma parte do meio político, sobretudo parlamentares de oposição. Para o ministro, isso é causa de uma excessiva “judicialização”, em que questões polêmicas são levadas para a análise do Supremo. “Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional. Nenhum Tribunal do mundo decide tantas questões divisivas da sociedade. Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião.”
Cerimônia
No início do discurso de posse, agradeceu à ex-presidente Dilma Rousseff, responsável por sua nomeação à Corte, em 2013. O ministro também agradeceu a presença de Lula. Em seguida, Barroso foi aplaudido ao defender que a prioridade do país seja a educação. “Penso que o compromisso do país deva ser educação: educação de qualidade e para todos”, disse. Na mesma cerimônia, o ministro Edson Fachin tomou posse como vice-presidente da Corte. A abertura da sessão foi o último ato da gestão da ministra Rosa Weber na Presidência do STF, há pouco mais de um ano no cargo.
A solenidade começou com apresentação da cantora Maria Bethânia, que interpretou o Hino Nacional. Após a apresentação, Barroso assinou o Termo de Compromisso e o novo presidente do STF foi oficialmente empossado. Coube ao decano da Corte, Gilmar Mendes, fazer o primeiro discurso, em nome do Supremo, relembrando os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. “Por tudo isso que se viu e se viveu, a presente cerimônia simboliza mais do que a continuidade de uma linhagem sucessória institucional. Ela assume um colorido novo. A posse de Vossa Excelência torna palpável a certeza de que, sim, o Supremo Tribunal Federal sobreviveu”, afirmou ele.
A cerimônia reuniu, além de nomes cotados à vaga de Rosa Weber, os candidatos à Procuradoria-Geral da República (PGR) favoritos até o momento. Lado a lado, e em tom de conversa, estiveram Paulo Gonet, atual vice-procurador-geral Eleitoral, e Antônio Carlos Bigonha. Ambos já foram ouvidos por Lula, e contam com fortes apoios. Gonet é apoiado por Dino, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, e Bigonha por setores do PT e auxiliares próximos de Lula.
Uma biografia progressista
Nascido no município de Vassouras (RJ) em 11 de março de 1958, Barroso já tinha uma carreira consolidada como um dos maiores advogados constitucionalistas do país quando foi indicado para a corte pela presidente Dilma Rousseff, em 2013, para assumir a vaga do ministro Ayres Britto. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde é professor titular de Direito Constitucional, Barroso tem mestrado na Universidade de Yale (EUA), doutorado na Uerj e pós-doutorado na Universidade de Harvard (EUA).
Ele é considerado uma das principais referências da principiologia constitucional no país, corrente do Direito que considera que alguns princípios podem ter um peso maior do que o que está escrito na lei e a expectativa. Além disso, ele também é defensor de uma corrente que é favorável a uma maior participação dos atores sociais nos julgamentos de grandes causas da corte, por meio de audiências públicas e abertura de espaço para manifestações de amicus curiae (amigos da corte) se manifestarem em julgamentos de casos de grande repercussão.
Foi com a orientação liberal e essa abordagem da principiologia que ele se notabilizou por defender temas tidos como polêmicos e progressistas desde sua atuação como advogado e procurador do Estado do Rio de Janeiro. Entre os julgamentos no STF que se destacou antes de virar ministro estão o que debateu a união homoafetiva, em 2011, e o uso de células-tronco para pesquisas científicas, em 2008.
Já enquanto ministro do Supremo, Barroso foi autor do voto vencedor do julgamento que levou à soltura de médicos e enfermeiros de uma clínica de aborto, em 2016. Na ocasião, o tribunal considerou por maioria que o aborto até o terceiro mês de gestação não configuraria crime. Em 2019 o ministro barrou ainda uma lei municipal de Londrina que proibia debates sobre gênero nas escolas. Além disso, durante a pandemia de Covid-19 votou contra o direito de pais proibirem os filhos de se vacinar, determinou a suspensão de despejos, reintegrações de posse ou remoções e também determinou que o governo Bolsonaro adotasse uma série de medidas para proteger os povos indígenas diante da Covid-19.
Mudanças na corte
A expectativa é que a gestão do ministro também traga mudanças na forma de julgamentos da corte. Em busca de agilizar os julgamentos, o ministro tem discutido com seus pares algumas mudanças administrativas. Uma das hipóteses analisadas, segundo o jornal O Globo, seria uma alteração no rito do julgamento: em vez de onze votos individuais, com maioria formada a favor ou contra a tese em discussão, o relator e, se houver, o voto vogal, apresentariam os posicionamentos e seriam apenas acompanhados pelos colegas, como já acontece nos Estados Unidos, por exemplo.
O ministro destacou que sua gestão terá três eixos: “Conteúdo, comunicação e relacionamento. Isso significa procurar melhorar a qualidade do serviço prestado pelo Poder Judiciário, com aumento da eficiência; ser melhor entendido pela sociedade, explicando o papel do STF e suas decisões; e manter relacionamento com todos os segmentos da sociedade, para ouvir os anseios e necessidade de todos, desde trabalhadores até empresários”.
Confira a íntegra do discurso
“Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; Senhor Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco; Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Arthur Lira; minha eterna Presidente, Ministra Rosa Weber, nas pessoas de quem cumprimento as autoridades dos três Poderes aqui presentes. Senhor Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti, e Senhora Procuradora-Geral da República em exercício, Elizeta Ramos, nas pessoas de quem cumprimento todos os advogados e membros do Ministério Público aqui presentes.
Queridos amigos, colegas e convidados, dividi esse discurso, que prometo não será mais longo do que o necessário, em três partes. A primeira é dedicada à Gratidão, ao reconhecimento às pessoas que pavimentaram o meu caminho até aqui; a segunda ao Judiciário, nosso papel e nossas circunstâncias; e a terceira ao Brasil, essa paixão que nos une e os compromissos que devemos ter.
PARTE 1: GRATIDÃO
I – Agradecimentos gerais
Poder agradecer é uma bênção. Dedico esse momento a meus pais, Judith e Roberto, que encheram a minha vida de afeto e valores, e ainda me deram uma irmã adorável. Tereza, Luna e Bernardo foram minha inspiração, motivação e alegria pela vida afora. Sou grato, também, à legião de amigos que cruzaram o meu caminho em fases diferentes da vida e que a tornaram melhor e mais feliz. Muitos estão aqui presentes. Homenageio todos eles na pessoa de José Paulo Sepúlveda Pertence, que há pouco nos deixou. Meu agradecimento se estende a todos os servidores e assessores que estiveram comigo nesses dez anos de Supremo, permitindo não apenas que eu reduzisse o acervo do gabinete de 9.500 processos para o mínimo possível – cerca de 900 –, mas também que eu vivesse muitas vidas em uma só.
Minha gratidão vai também para a Presidenta Dilma Rousseff, que me indicou para o cargo da forma mais republicana que um presidente pode agir: não pediu, não insinuou, não cobrou. Procurei retribuir a confiança servindo ao Brasil sem jamais ter qualquer outro interesse ou intenção que não fosse a de fazer um país melhor e maior, um país justo, quem sabe um dia. Aproveito para saudar, também, o Presidente Lula e os Presidentes Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, que juntamente com este Supremo Tribunal Federal, simbolizam a solidez e os compromissos democráticos de nossas instituições. Mas há um agradecimento muito especial que eu gostaria de fazer.
II – Reconhecimento aos meus professores
Eu nasci em Vassouras, uma graciosa cidade a duas horas do Rio de Janeiro, repleta de palmeiras imperiais, de um casario colonial preservado e de gente simples e generosa, como minha amada Tetê do Carmo. Estudei ao longo da vida no Colégio de Vassouras, da vovó Maria; na Escola Roma, de Dona Zoraide; no Colégio Pedro Álvares Cabral, de Dona Florinda; na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de Jacob Dolinger e José Carlos Barbosa Moreira. Também estudei em Yale, com Bruce Ackerman e Harold Koh, e em Harvard, onde convivi com acadêmicos como Mark Tushnet e Mangabeira Unger.
Foi uma longa jornada até aqui. Meu agradecimento mais especial vai para todos os professores que iluminaram o meu caminho (o meu e o de todos nós) com princípios elevados, ideias e bons exemplos. A esse registro, acrescento uma constatação: sou convencido, por experiência própria, que a coisa mais importante que um país pode fazer pelos seus filhos é assegurar educação de qualidade e universal para todos, em todo o ensino básico, e com uma combinação de mérito e justiça distributiva – social e racial – no ensino superior. Três prioridades na vida de um país hão de ser: educação, educação de qualidade e educação para todos.
Antes de seguir adiante, presto uma homenagem devida e merecida.
III – Homenagem à ministra Rosa Weber
Suceder a Ministra Rosa Weber não é tarefa fácil. Suceder, porque substituí-la seria impossível. Tornamo-nos amigos queridos desde o primeiro dia em que aqui cheguei. Sua figura doce e personalidade cativante fizeram do nosso convívio um privilégio sem tamanho para mim. Como juíza, sua carreira foi impecável, da Justiça do Trabalho de primeiro grau, no seu amado Rio Grande do Sul, passando pelo Tribunal Regional do Trabalho, pelo Tribunal Superior do Trabalho até chegar ao Supremo
Tribunal Federal e depois ao Tribunal Superior Eleitoral. Uma vida completa. Por onde passou, deixou a marca da sua capacidade e uma legião de admiradores. Aqui no Supremo, foi relatora de processos memoráveis. No TSE, presidiu com firmeza e competência as polarizadas eleições de 2018. Também no Supremo, com habilidade imensa, obteve a aprovação de alterações regimentais importantíssimas. E, em um dos momentos mais dramáticos de nossa história, liderou a reconstrução deste Plenário em 21 dias, de modo a que estivesse pronto na reabertura do ano judiciário.
Ministra Rosa Weber: sei que seu espírito reservado não é afeito a honrarias. Mas, em nome da nação agradecida, em nome dos que sabem distinguir as grandes figuras da história deste Tribunal, eu a reverencio pelos imensos serviços prestados ao Brasil. Que V. Exa. seja perenemente bendita.
PARTE 2: O PODER JUDICIÁRIO
I – O Supremo Tribunal Federal
Falo agora sobre o Poder Judiciário, começando pelo Supremo Tribunal Federal, que é o Tribunal da Constituição. Cabe a ele interpretá-la e, como consequência, preservar a democracia e promover os direitos fundamentais. Comento cada uma dessas missões.
- A interpretação da Constituição
A Constituição estrutura o Estado, demarca a competência dos Poderes e define os direitos e garantias dos cidadãos. Todas as constituições democráticas fazem isso, a brasileira inclusive. Porém, a nossa Constituição vai bem além: ela contempla, também, o sistema econômico, o sistema tributário, o sistema previdenciário, o sistema de educação, de preservação ambiental, da cultura, dos meios de comunicação, da proteção às comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente, do idoso, em meio a muitos outros temas. Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional. Nenhum Tribunal do mundo decide tantas questões divisivas da sociedade. Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião.
Nada obstante, é imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil.
- A defesa da democracia
Nós não somos um Tribunal de consensos plenos. Nenhum tribunal é. A vida comporta diferentes pontos de observação e eles se refletem aqui. Porém, estivemos mais unidos do que nunca na proteção da sociedade brasileira na pandemia. E, também, estamos sempre juntos, em sólida unidade, na defesa da democracia. A democracia constitucional é a composição de valores diversos, duas faces da mesma moeda. De um lado, soberania popular (amplo direito de participação popular), eleições livres e governo da maioria. De outro, poder limitado, Estado de direito e respeito aos direitos fundamentais. Um equilíbrio delicado e fundamental. Em todo o mundo, a democracia constitucional viveu momentos de sobressalto, com ataques às instituições e perda de credibilidade. Por aqui, as instituições venceram, tendo ao seu lado a presença indispensável da sociedade civil, da Imprensa e do Congresso Nacional. E, justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo. Costumamos identificar os culpados de sempre: extremismo, populismo, autoritarismo… E de fato eles estão lá.
Mas a recessão democrática fluiu, também, pelos desvãos da democracia: as promessas não cumpridas de oportunidades, prosperidade e segurança para todos. As democracias contemporâneas precisam equacionar e vencer os desafios da inclusão social, da luta contra as desigualdades injustas e do aprimoramento da representação política.
- A proteção dos direitos fundamentais
Por fim, cabe-nos a proteção dos direitos fundamentais, que são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna. Direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna. Nessa matéria, temos procurado empurrar a história na direção certa. Temos sido parceiros da ascensão das mulheres, na luta envolvente por igual respeito e consideração, no espaço público e no espaço privado, bem como contra a violência doméstica e sexual. Também temos atuado, sempre com base na Constituição, em favor do heroico esforço da população negra por reconhecimento e iguais oportunidades, validando as ações afirmativas, imprescindíveis para superar o racismo estrutural que a escravização e sua abolição sem inclusão acarretaram. Do mesmo modo, a comunidade LGBTQIA+ obteve neste Tribunal o reconhecimento de importantes direitos, com destaque para a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, tendo por desdobramento a possibilidade do casamento civil.
Mas não foi só. Povos indígenas passaram a ter a sua dignidade reconhecida, bem como o direito a preservarem sua cultura e, ao menos, uma parte de suas terras originárias. Atuamos, ainda, para que pessoas com deficiência sejam valorizadas na sua diferença, no esforço de se proporcionar acessibilidade e inclusão. A proteção ambiental foi igualmente objeto de atenção do Supremo, que procurou enfrentar, dentro dos seus limites, o desmatamento e a mudança climática. São lutas inacabadas, mas na vida devemos saborear os avanços e as vitórias. Há quem pense que a defesa dos direitos humanos, da igualdade da mulher, da proteção ambiental, das ações afirmativas, do respeito à comunidade LGBTQIA+, da inclusão das pessoas com deficiência, da preservação das comunidades indígenas são causas progressistas. Não são. Essas são as causas da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas. Poucas derrotas do espírito são mais tristes do que alguém se achar melhor do que os outros.
II – A Justiça no Brasil
O Judiciário brasileiro é dos mais independentes e produtivos do mundo. Independente porque, para alguém se tornar juiz, o que se exige é haver cursado uma Faculdade de Direito e ter sido aprovado em um disputado concurso público. Não deve favor a ninguém. É certo que nos tribunais superiores há um componente político, como é em todo o mundo. Mas o DNA de independência não se perde. E a Justiça do Brasil é, também, uma das mais produtivas do planeta, julgando cerca de 30 milhões de processos por ano. Somos cerca de 18 mil juízes, sendo a magistratura, provavelmente, a instituição de maior capilaridade de todo o país. Juízes bem-preparados, íntegros e vocacionados são uma bênção para a democracia, para a Justiça e para a cidadania.
Comprometo-me a contribuir para que sejam selecionados com rigor, sejam ouvidos e valorizados. Ainda assim, há dois pontos em que temos de melhorar. O primeiro: aumentar a participação de mulheres nos tribunais, com critérios de promoção que levem em conta a paridade de gênero. E, também, ampliar a diversidade racial. Além disso, com inovações tecnológicas e Inteligência Artificial, vamos procurar aumentar a eficiência e a celeridade da tramitação processual no Brasil. Para esse fim, venho mapeando os gargalos e pontos de congestionamento do Judiciário e vamos enfrentá-los. Não há lugar para celebração aqui: precisamos melhorar a qualidade do serviço que prestamos à sociedade brasileira.
III – As diretrizes da minha gestão
Com a bênção de Deus e a ajuda imprescindível dos colegas, pretendo fazer uma gestão em torno de três grandes eixos. O primeiro deles será o conteúdo, que consiste em procurar aumentar a eficiência da justiça, avançar a pauta dos direitos fundamentais e contribuir para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do Brasil. O segundo eixo será o da comunicação, melhorando a interlocução com a sociedade, expondo em linguagem simples o nosso papel, explicando didaticamente as decisões, desfazendo incompreensões e mal-entendidos. E o terceiro será o eixo do relacionamento. O Judiciário deve ser técnico e imparcial, mas não isolado da sociedade. Precisamos estar abertos para o mundo, com olhos de ver e ouvidos de ouvir o sentimento social. A gente na vida deve ser janela e não espelho, ter a capacidade de olhar para o outro, e não apenas para si mesmo.
O Poder Judiciário, o Direito em geral, gravita em torno de dois grandes valores: a justiça e a segurança. Da justiça já falamos. Pretendo dar grande ênfase, também, à segurança, em três de suas dimensões: segurança jurídica, segurança democrática e segurança humana. Segurança jurídica para que haja um bom ambiente para o desenvolvimento da economia e dos negócios no país, com incentivo ao empreendedorismo, ao investimento e à inovação. Sem surpresas. Precisamos superar a desconfiança que ainda existe no Brasil em relação à livre iniciativa e ao sucesso empresarial. É daí que vem o emprego, a ascensão social e o progresso. Não menos importante é a segurança democrática, com eleições limpas, liberdades públicas, independência entre os Poderes e respeito às instituições. E, também, como princípio e fim, a segurança humana, que inclui o combate à pobreza, às desigualdades injustas e à criminalidade, com segurança pública e valorização das polícias, treinadas numa imprescindível cultura de respeito à cidadania e aos direitos humanos.
Meus queridos colegas deste Tribunal: o Universo nos reuniu aqui porque temos uma missão. Somos um time, no qual cada um tem uma posição, mas também um objetivo comum. Por isso mesmo, vamos continuar a estreitar os laços de colegialidade e de institucionalidade. De minha parte, contem com o diálogo franco e a parceria afetuosa. Estar aqui é um desafio, um privilégio e um destino, que cumprimos em conjunto. É muito bom tê-los ao meu lado. E eu ainda tenho a sorte de ter como
Vice-Presidente, meu amigo de toda vida, o Ministro Luiz Edson Fachin, uma das melhores pessoas que conheci nessa jornada que já vai longa.
PARTE 3: O BRASIL
- O Brasil que queremos
A democracia venceu e precisamos trabalhar pela pacificação do país. Acabar com os antagonismos artificialmente criados para nos dividir. Um país não é feito de nós e eles. Somos um só povo, no pluralismo das ideias, como é próprio de uma sociedade livre e aberta. “Bastar-se a si mesmo é a maior solidão”, escreveu o poeta. O sucesso do agronegócio não é incompatível com proteção ambiental. Pelo contrário. O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos. O enfrentamento à corrupção não é incompatível com o devido processo legal. Estamos todos no mesmo barco e precisamos trabalhar para evitar tempestades e conduzi-lo a porto seguro. Se ele naufragar, o naufrágio é de todos, independentemente de preferências políticas. No interesse da justiça, pretendo ouvir a todos, trabalhadores e empresários, comunidades indígenas e agricultores, produtores rurais e ambientalistas, gente da cidade e do interior. E, também, conservadores, liberais e progressistas.
Ninguém é dono da verdade, ninguém tem o monopólio do bem e da virtude. A vida na democracia é a convivência civilizada dos que pensam diferente. E quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de uma sociedade aberta, plural e democrática.
II – Uma agenda para o Brasil
Sem que ninguém precise abrir mão de qualquer convicção, é preciso que o país se aglutine em torno de denominadores comuns, de uma agenda para o Brasil. Com base na Constituição, é possível construir esses consensos. Aqui vão alguns deles: (i) combate à pobreza; (ii) desenvolvimento econômico e social sustentável; (iii) prioridade máxima para a educação básica; (iv) valorização da livre- iniciativa, bem como do trabalho formal; (v) investimento em ciência e tecnologia; (vi) saneamento básico; (vii) habitação popular; e (viii) liderança global em matéria ambiental. Subjacentes a qualquer agenda, há três elementos essenciais para se fazer um grande país: integridade, civilidade e confiança. Todos eles vêm antes da ideologia, antes das escolhas políticas pessoais. Na verdade, entre pessoas íntegras e civilizadas, a confiança brota espontaneamente. Sem confiança não há progresso.
III – Valores que devem nos guiar
No dia da minha posse, em 26 de junho de 2013, eu publiquei um artigo de autoapresentação, onde escrevi: creio no bem, na justiça e na tolerância como valores filosóficos essenciais. Creio na educação, na igualdade, no trabalho e na livre iniciativa como valores políticos fundamentais. E no constitucionalismo democrático como forma institucional ideal. Passados dez anos, venho aqui renovar os mesmos votos.
Com alguns novos aprendizados: os países, como as pessoas, passam pelo que têm de passar para amadurecerem e evoluírem; a vida no setor público é mais dura e difícil do que parece; se você estiver cumprindo a missão da sua vida, nem elogio nem crítica têm o poder de mudar a sua direção; só a verdade ofende: se for mentira, trate com indiferença; o Brasil é um país onde muita gente coloca as relações pessoais acima da correção e do dever; na vida, não basta estar certo, é preciso saber levar; e, muito importante: com boa-fé e boa-vontade, quase tudo é possível nesse mundo. Há uma última convicção que gostaria de compartilhar.
A afetividade é uma das energias mais poderosas do universo. O sentimento sincero de fraternidade e empatia por todas as pessoas transforma o mundo. Viver sem malícia, sem espertezas, sem passar os outros para trás. Sem maledicência. Para alguns soará ingênuo. Mas esse é o caminho para a paz interior, o sucesso pessoal e o progresso social. A virtude é sua própria recompensa. O resto é aparência. A história é uma marcha contínua na direção do bem, da justiça e do avanço civilizatório. Basta olhar através dos tempos: viemos de épocas de sacrifícios humanos, despotismos cruéis, inquisições e holocaustos até a era dos direitos humanos. Ainda não plenamente concretizados, mas vitoriosos na maior parte dos corações e mentes. É certo que a história não é linear, mas feita de avanços e retrocessos. Porém, mesmo quando não se consegue ver da superfície, ela continua fluindo como um rio subterrâneo na direção que tem de seguir. Essa a minha fé racional, a minha crença mais profunda.
E porque assim é, tenho uma visão positiva e construtiva da vida, mesmo na adversidade. E nos momentos difíceis, quando tudo parece fora do lugar, quando as pessoas não se apresentam na sua melhor versão, eu me consolo com a máxima que rege a minha vida: não importa o que esteja acontecendo à sua volta: faça você o melhor papel que puder. E seja bom e correto, mesmo quando ninguém estiver olhando.
Na minha sabatina no Senado Federal, aqui hoje representado por seu presidente Rodrigo Pacheco, eu me vali de uma parábola com a qual gostaria de encerrar esse discurso. Na vida nós estamos sempre nos equilibrando. Viver é andar numa corda bamba. A gente se inclina um pouco para um lado, um pouco para o outro
e segue em frente. É assim para todo mundo, não importa se você está no palco ou na plateia. Às vezes, alguém olhando de fora pode ter a impressão de que o equilibrista está voando. Não é grave, porque a vida é feita de certas ilusões. Mas o equilibrista tem de saber que ele está se equilibrando. Porque se ele achar que está voando, ele vai cair. E na vida real não tem rede. Pretendo atuar, à frente do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário brasileiro, da forma como acho que a vida deve ser vivida: com valores, com empatia, com bom humor sempre que possível e, sobretudo, com humildade.
Assumo a presidência do Supremo e do CNJ sem esquecer que sou, antes de tudo, um servidor público. Um servidor da Constituição. Que eu possa ser abençoado para cumprir bem essa missão.
Muito obrigado.”
(Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF)