Henrique Acker (correspondente internacional) – Centenas de milhares de portugueses saíram às ruas para comemorar os 50 anos do 25 de Abril este ano. Foi neste dia, em 1974, que tropas do exército português, lideradas por oficiais (capitães), entraram em Lisboa e derrubaram o regime fascista de quase cinco décadas.
O que fez o exército português se insurgir contra o salazarismo? Em parte as medidas administrativas adotadas pelo governo geraram descontentamento entre os oficiais. Mas, essencialmente, a tropa estava farta de uma guerra colonial perdida e injusta em África.
Portanto, muito da liberdade e da democracia conquistada em Portugal se deve à luta de resistência dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde. Registros ainda precários indicam a morte de 45 mil africanos, entre 1961 e 1974, além dos cerca de 9 mil soldados portugueses e dos dezenas de milhares de feridos e mutilados.
Reparar danos
O Presidente de Portugal, num rasgo de lucidez, finalmente reconheceu o dever de reparar os danos causados aos povos pela empreitada colonial e “pagar os custos” dos crimes cometidos.
Várias formas de buscar reparações podem ser pensadas, ainda que elas não passem pelo pagamento de pensões. Uma delas seria o perdão das dívidas das ex-colônias africanas com Portugal. A outra seria uma atualização da história colonial a ser ministrada nas escolas.
Imediatamente se levantaram as vozes do atraso em Portugal. Aquelas mesmas que exaltam a bravura dos navegantes e argumentam que as ex-colônias devem o que têm hoje ao trabalho desenvolvido pelos colonizadores. Não veem qualquer ligação histórica entre o passado colonial e o presente de extrema-pobreza e desigualdade nas ex-colônias.
Os porta-vozes da extrema-direita, indignados, classificam a fala do Presidente português como absurda, inoportuna e até traição à pátria. Ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa, a direita quer mesmo manter esse assunto debaixo do tapete da história.
O jornalista brasileiro Laurentino Gomes – autor de Escravidão (obra em três volumes) – refere-se a um total de 12,5 milhões de escravos embarcados nas costas da África para as Américas, dos quais 1,8 milhão morreu só na travessia. Desses, quase cinco milhões foram levados em navios negreiros pelos portugueses para o Brasil.
Acumulação primitiva de capital
Foi o que o autor brasileiro Jacob Gorender batizou de “escravismo colonial”, um sistema empresarial de uso intensivo de mão-de-obra africana para sustentar a acumulação primitiva de capital, levado para a metrópole, enriquecendo os que cercavam a corôa portuguesa e beneficiando também os prepostos de Portugal no Brasil.
Fosse para extrair madeira, converter cana em açúcar ou grãos em café, fosse para extrair pedras preciosas e ouro, o colonialismo contou com a força de trabalho de milhões de almas, convertidas em escravos.
Mesmo depois da independência, a escravidão continuou a ser o motor da economia brasileira até 1889 (ciclo do café), no campo e nas cidades. E com base nela, toda a riqueza herdada por famílias portuguesas que enriqueceram no Brasil.
Muitas dessas famílias viriam a formar as classes dominantes brasileiras depois da independência (1822). Basta lembrar que Pedro I (Pedro IV em Portugal) após abdicar do trono no Brasil, deixou seu filho, Pedro II, como sucess1or e mais tarde rei do Brasil. Cabe também conferir a árvore genealógica das famílias mais abastadas no Brasil.
Herança colonial no Brasil do século XXI
A herança do Brasil colônia e da escravidão está estampada nos dados sociais e econômicos do país até os nossos dias. Dos atuais 203 milhões de brasileiros, o IBGE registra 113 milhões de negros/pardos (Censo 2022), herdeiros diretos dos escravos trazidos da África nos 300 anos da empreitada colonial.
A consequência desta tragédia é a completa desvalorização do trabalho até os nossos dias. Não por acaso, os salários pagos aos trabalhadores negros no Brasil são bem menores dos que os dos trabalhadores brancos. A situação salarial das mulheres negras, cujo trabalho é o mais desvalorizado na sociedade brasileira, é ainda pior. Basta conferir os dados do IBGE.
Considerando o valor total médio, a diferença de rendimento médio foi de 61,4% favoravelmente à população branca (R$ 20,10) em relação à preta ou parda, (R$ 11,80):
A consequência direta da escravidão está na desvalorização completa do valor do trabalho. No Brasil de 2022, 60,1% da população economicamente ativa recebia até um salário-mínimo (R$ 1.212,00):
Cumplicidade de chefes e reis africanos
Não menos nociva foi a cumplicidade das antigas classes dominantes negras, seus reis e chefes, que participaram do comércio de escravos de tribos e etnias subjugadas. Muitos deles se alinharam ao colonizador para garantir seu status de coadjuvante da empreitada colonial na África.
“O comércio negreiro motivou uma série de guerras étnicas e conflitos que tinham como objetivo obter escravos, para que pudessem ser vendidos para comerciantes europeus”, diz o professor da Universidade de Syracuse e arqueólogo Christopher DeCorse.
Durante a guerra colonial (1961/1974) em Moçambique, Angola e Guiné, foram formados batalhões negros de combate do exército português. O alistamento militar passou a ser obrigatório em África desde 1926, com a intenção de “civilizar” o africano.
Em termos globais, e de acordo com os indicadores disponíveis, entre 1961 e 1973 foram recrutados aproximadamente um milhão de soldados portugueses para a guerra. No final dos conflitos, o recrutamento de africanos representava aproximadamente metade dos contingentes presentes nos três territórios.
A africanização das forças portuguesas também contribuía para um maior envolvimento das classes dominantes das colônias na guerra. Em 1961, Portugal permitiu a concessão da cidadania portuguesa a todos os habitantes das então denominadas Províncias Ultramarinas.
Herdeiros do colonialismo
O auge da escravidão ocorreu de 1750 a 1850 (ano em que o tráfico foi finalmente proibido). Naquele período, aportaram no Brasil sete mil navios portugueses ou brasileiros trazendo escravos da África. Traficantes portugueses fizeram fortunas e, em alguns casos, até ganharam títulos de nobreza em Portugal.
A vida do Conde Joaquim Ferreira dos Santos é uma demonstração disso. No começo do século 19, ele montou postos de compra de escravos em Angola, que controlava a partir do Rio de Janeiro. Ele próprio foi à África algumas vezes para carregar seus navios de escravos. Calcula-se que tenha vendido 10 mil africanos em território brasileiro. Quando o Brasil se tornou independente, Ferreira dos Santos pediu nacionalidade brasileira e continuou traficando escravos.
A voracidade pelo empreendimento colonial, que tinha na escravidão o seu pilar de sustentação, foi resultado da cumplicidade da Corôa portuguesa, dos prepostos da Corôa portuguesa no Brasil e chefes das ex-colônias portuguesas na África.
São os herdeiros desta história, que pretendem colocar uma pedra sobre a empreitada colonial e o atraso que ela causou aos povos e nações que sofrem suas consequências até hoje. É essa minoria, representada pela direita e a extrema-direita nos três continentes, que nega qualquer forma de abrir o debate sobre a reparação.
Por Henrique Acker (correspondente internacional)
Fontes:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45092235
https://blog.toroinvestimentos.com.br/alta-renda/piramide-salarial-brasil/
https://www.dw.com/pt-002/baixas-na-guerra-colonial-s%C3%A3o-maiores-do-que-se-pensava/a-59132358
file:///C:/Users/noten/Desktop/Dados%20socecoBras/SIS%202023%20IBGE.pdf
https://www.slavevoyages.org/voyage/database (dados detalhados do embarque e desembarque de negros africanos escravizados – 36.150 registros)
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