Golpe: especialistas veem manobra jurídica em decisão da Câmara

Especialistas em direito constitucional entrevistados pela Agência Brasil analisam que a Câmara dos Deputados realizou uma estratégia legal com o objetivo de interromper totalmente o processo relacionado à tentativa de golpe de Estado envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 33 pessoas acusadas.

A Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira (7), por 315 votos a 143, a interrupção de qualquer ação penal relacionada ao esquema golpista, fundamentando-se no artigo 53 da Constituição. Esse artigo possibilita que o Legislativo suspenda, durante o tempo de mandato, investigações criminais contra seus membros, considerando a envolvência do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) na acusação.

Legendas de centro-esquerda anunciaram que irão apelar ao Supremo Tribunal Federal (STF) em resposta à deliberação da Casa. Caso sejam acionados, o STF terá a responsabilidade de se pronunciar sobre a questão, com a possibilidade de anular ou alterar a decisão.

De acordo com os advogados entrevistados, a Câmara não tem a autoridade para ampliar a imunidade parlamentar a outros acusados que tentaram obstruir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O docente de pós-graduação em direito da Universidade de Brasília (UnB), Gladstone Leonel Jr., considerou que a Câmara realizou umainterpretação contorcida” que fere a Constituição.

“O artigo 53 é claro ao afirmar que a denúncia apresentada se refere a um senador ou deputado. Esse dispositivo é específico para os parlamentares e não pode ser aplicado a outros indivíduos que participam do mesmo processo. Estamos nos referindo a um artigo da Constituição localizado na seção V, intitulada Dos deputados e dos senadores‘,” comentou Gladstone.

O docente Georges Abboud, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ressaltou que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, por meio da Súmula 245, que a imunidade conferida a parlamentares não se aplica aos co-réus em um processo criminal.

“O Supremo já se manifestou sobre isso. A suspensão da ação está relacionada à imunidade dos parlamentares, não se pode envolver indiscriminadamente todos, como alguns tentaram, o que configuraria uma interferência indevida em outro Poder. Trata-se de uma interpretação equivocada da Constituição”, defendeu Abboud, que também é docente no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

O deputado Alfredo Gaspar (União-AL), responsável pelo relatório do caso, comunicou à Agência Brasil na sessão de ontem que o requerimento aprovado contém apenas uma transcrição do que está previsto na Constituição, destacando a parte que menciona “sustar o andamento da ação”.

O parágrafo terceiro do Artigo 53 estabelece que, ao recebê-la, a denúncia contra Senadores ou Deputados, referente a crimes cometidos após a diplomação, será comunicada pelo STF à Casa Legislativa correspondente. Essa Casa, mediante solicitação de um partido político que a integrou e pela votação da maioria de seus integrantes, poderá interromper o prosseguimento da ação até que haja uma decisão definitiva.

Os parlamentares que deram aval ao relatório argumentaram que a Constituição exige a suspensão de qualquer processo criminal, independentemente de quem esteja envolvido.

Processos penais

Uma outra discordância levantada durante a votação na Câmara diz respeito à data em que os delitos atribuídos a Ramagem teriam ocorrido, se antes ou após a diplomação do político, realizada em 16 de dezembro de 2022. Conforme estipulado no Artigo 53, somente é possível suspender processos penais referentes a crimes cometidos após a referida diplomação.

Ramagem atuou como diretor executivo da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro, sendo acusado de realizar monitoramento ilícito de autoridades e de contribuir para uma tentativa de golpe de Estado ao disseminar desinformação que visava desacreditar a legitimidade das eleições e das urnas.

Alfredo Gaspar, o relator, argumentou que o delito de organização criminosa deve ser considerado um crime contínuo e, dessa maneira, persiste mesmo após a diplomação, o que autoriza a Câmara a interromper essa acusação.

O Supremo Tribunal Federal, em comunicação direcionada à Câmara, declarou que o Legislativo poderia apenas interromper os processos referentes ao crime de dano qualificado e grave ameaça ao patrimônio da União, no que diz respeito aos incidentes ocorridos em 8 de janeiro. Isso significa que Ramagem deve prosseguir sendo responsabilizado por tentativa de golpe de Estado e formação de quadrilha.

Segundo o professor Gladstone Leonel, a configuração do crime de organização criminosa ocorre quando os membros firmam um acordo de cooperação para a realização do golpe de Estado, ou seja, antes da diplomação.

Ele se concretiza no instante em que um entendimento mútuo é formado entre, pelo menos, quatro indivíduos visando benefícios impróprios, especificamente, uma manobra para derrubar o governo”, afirmou.

O docente Georges Abboud, por sua parte, afirma que tanto a justificativa do relator quanto a do professor Gladstone podem estar corretas em teoria”.

Um dos lados terá fundamento em relação ao caso em questão, que o Supremo precisará analisar. Além disso, haverá um debate sobre a sequência dos eventos e a identificação de características do tipo penal, como a ameaça séria, sem levar em conta os acontecimentos que ocorreram após a diplomação“, afirmou.

Legitimidade eleitoral

De acordo com o STF, a Câmara não tinha a autoridade para cancelar a acusação de tentativa de golpe dirigida a Ramagem. Por sua vez, o relator Gaspar argumentou que tal crime só seria configurado após a posse do novo governo eleito, que aconteceu após a diplomação dos deputados.

No relatório, foi afirmado que a alegada tentativa de golpe contra um governo que, de fato, foi estabelecido só poderia acontecer após a formação oficial do novo governo.”.

Na opinião do professor Georges Abboud, da PUC-SP, um governo pode ser considerado “legitimamente” estabelecido quando é escolhido por meio de eleições, como ocorreu em 30 de outubro de 2022.

“Um resultado eleitoral pode ser considerado legítimo. Qual é a finalidade da proteção legal? Garantir que as eleições sejam justas e democráticas. Caso contrário, poderia interpretar que, até 31 de dezembro, estaria em meu direito de mobilizar as Forças Armadas, eliminar a oposição, e isso não seria um golpe de Estado“, acrescentou.

Em relação à afirmação do deputado Ramagem de que não houve violência ou ameaça grave para definir a tentativa de golpe de Estado, o professor Abboud considera essa posição pouco consistente.

“Quando observamos as imagens do dia 8 de janeiro, é evidente que diferentes formas de violência foram empregadas, mesmo que não sejam as habituais associadas a golpes de Estado. Esta é uma circunstância complexa, pois muitos delitos contemporâneos devem ser analisados em um contexto, considerando a sequência de acontecimentos, e não apenas o momento decisivo [8 de janeiro]“, finalizou.

Acusação de golpe

A acusação de tentativa de golpe de Estado apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) aponta que a intenção da conspiração era invalidar as eleições presidenciais de 2022, e que estavam planejados assassinatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do STF Alexandre de Moraes.

De acordo com a acusação, o esquema ilegal conduzido pelo ex-presidente Bolsonaro tentou obter apoio das Forças Armadas para implementar um Estado de Sítio, que serviria como um meio para provocar uma quebra na democracia brasileira. Os envolvidos refutam as alegações(Foto:  Roque de Sá/Agência Senado)

Relacionados

plugins premium WordPress