Feminista e escritora nigeriana, que lança novo romance após uma década, diz que sua ficção vem antes de suas declarações, critica tentativas da esquerda de controlar a linguagem e fala sobre relação que tem com a fé: ‘é busca por sentido’
Chimamanda Ngozi Adichie retorna com uma nova obra. Na próxima terça-feira (11), será lançada nas livrarias do Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá seu novo romance, intitulado “A contagem dos sonhos”, que marca seu primeiro lançamento desde “Americanah”, de 2013. Mas por que uma das autoras mais aclamadas da contemporaneidade, cuja notável trajetória contribuiu para inserir a diversidade nas discussões do mercado editorial, permaneceu em silêncio por mais de dez anos?
— Eu adoraria descobrir — riu Chimamanda, que conversou com o jornal O GLOBO por meio de vídeo de sua residência nos arredores de Baltimore, nos Estados Unidos. — Quando fiquei grávida, há dez anos, passei pelo que muitos chamam de “bloqueio criativo”. Sou uma pessoa supersticiosa e não costumo gostar de comentar sobre isso. Não ser capaz de escrever ficção é meu maior temor, é como se eu estivesse presa fora de mim mesma.
Na realidade, Chimamanda não ficou calada durante esse período. Ela manteve sua atuação como uma intelectual de destaque, uma posição que consolidou após suas palestras “Sejamos todos feministas” e “O perigo de uma história única” no TED Talks.
Em 2020, ela lançou “Notas sobre o luto”, um relato pessoal sobre a morte de seu pai. Em uma nota que acompanha “A contagem dos sonhos”, ela menciona que sua nova obra trata da perda de sua mãe, ocorrida em 2021.
A narrativa ocorre entre os Estados Unidos e a Nigéria, centrando-se em quatro personagens principais: Chiamaka, uma escritora de guias de viagem que, isolada durante a pandemia, reflete sobre seus relacionamentos anteriores; Zikora, uma advogada de sucesso que se sente sufocada pelas exigências de sua mãe, que a apoia após uma desilusão amorosa; Omelogor, um prodígio em finanças que investiga a indústria da pornografia e mantém um blog com dicas para homens; e Kadiatou, que sofreu uma grande injustiça em sua história.
Durante a entrevista ao GLOBO, a autora elucidou por que as expectativas das mães são um dos enfoques centrais de seu romance. Ela denunciou a “covardia” de empresas que abandonam projetos de diversidade para satisfazer Donald Trump, além de criticar as tentativas da esquerda de “dominar a linguagem”. A escritora também revelou que, após o falecimento de seus pais, tem experimentado um “desejo intenso por consolo” proveniente da fé.
O portal Opinião em Pauta apresenta a seguir partes da entrevista.
Teme que suas intervenções como intelectual pública coloquem a sua ficção em segundo plano?
Nem sempre gosto quando uma pessoa me diz: “Conheço você das entrevistas e dos TED Talks, mas nunca li um romance seu.” Então ela não me conhece de verdade, porque a minha ficção vem em primeiro lugar. Gostaria que as pessoas não me vissem só como uma mulher que dá opinião (risos). Desde criança eu fui incentivada a compartilhar minhas opiniões. Eu tinha 8 anos e meu pai queria saber o que eu pensava.
Como você descobriu que a “A contagem dos sonhos” era sobre a perda da sua mãe?
A morte do meu pai foi muito difícil, mas pelo menos eu ainda tinha a minha mãe. Meses depois ela se foi. A morte dela destruiu alguma coisa dentro de mim. Ainda não processei o choque. Até me arrependo de ter escrito que o livro era sobre ela, porque ter que falar sobre isso me emociona muito. Só no fim, relendo o livro, eu percebi que era sobre ela. Fiquei surpresa ao ver o quão presente ela estava ali.
O peso das expectativas maternas é um tema presente em todo o livro. Por quê?
A experiência feminina ainda não é entendida como universal. A história da literatura é ainda muito masculina, embora isso esteja mudando. Foi natural falar sobre expectativas maternas. De certa forma, as vidas das minhas personagens, e de muitas mulheres nigerianas, são moldadas pelo que nossas mães esperam de nós. Essa é uma experiência universal que devíamos ver mais na literatura.
Ressentimento é outro tema do livro. Os colegas intelectuais de um dos namorados de Chiamaka se ressentem dela por ser uma africana rica que não se sente mal por aproveitar o conforto que o dinheiro traz.
Espera-se que um “africano autêntico” seja objeto da piedade alheia, senão as pessoas se ressentem. É como se a riqueza nos fizesse inautênticos e o nosso lugar fosse necessariamente na base da pirâmide. A Nigéria é um país profundamente materialista, onde há muita pobreza e um pequeno número de pessoas incrivelmente ricas. Os mais pobres desejam coisas caras porque a riqueza está muito perto deles. Não dá para entender a psicologia do nigeriano médio sem reconhecer isso. Existe também a suposição de que se um africano tem dinheiro é porque ele é corrupto. Isso é pura estupidez. É claro que há políticos corruptos, mas muita gente ganhou dinheiro honestamente. Só que elas não cabem nos estereótipos.
Elas estavam lá: Livros, filmes e peças de teatro adotam perspectiva feminina para contar a história da ditadura
Os colegas desse namorado de Chiamaka acham tudo “problemático”. Você quis apontar o que há de “problemático” no comportamento de certas elites intelectuais?
É você que está dizendo isso (risos). O problema é que a esquerda americana também tenta controlar a linguagem. Uma das personagens do livro, Omelogor, se muda da Nigéria para os EUA e fica chocada com o ambiente repressivo nas universidades. A esquerda não consegue falar honestamente sobre questões importantes. Antes de falar sobre racismo, nos dizem qual é a linguagem correta para falar de racismo. No fim, vira uma discussão semântica e não mais sobre racismo. É claro que o que o Trump está fazendo é muito pior, porque está usando o poder da Presidência dos EUA. Como alguém que acredita profundamente na liberdade de pensamento, eu acho toda tentativa de controlar a linguagem muito preocupante.
Em seu blog, Omelogor dá dicas bem-humoradas a seus leitores homens, como aprender a pedir desculpas e se conscientizar de que a pornografia não é realista. Você tem algum conselho para os seus leitores homens?
Escutar é sempre uma boa ideia. Independente da sua opinião sobre o que uma mulher disse ou fez, escute a versão dela.
Chiamaka se surpreende ao saber que metade da população do Brasil é negra porque “nunca tem gente preta nas imagens famosas do Brasil”. Você também se surpreendeu?
Sim. Fiquei chocada quando fui ao Rio pela primeira vez, porque não sabia que havia tantas pessoas negras. Me deixou triste pensar o quão doloroso deve ser invisível em seu próprio país.
Donald Trump está numa cruzada contra iniciativas de promoção da diversidade. Você teme retrocessos no mercado editorial?
As empresas que estão acabando com os programas de diversidades para agradar ao governo americano são covardes. Do ponto de vista dos negócios, a diversidade faz sentido. Se há pessoas de diferentes origens numa empresa, há mais ideias competindo e maior probabilidade de se chegar à melhor solução. Não quero nem imaginar a possibilidade de um retrocesso no mercado editorial. Talvez o mundo dos livros seja um pouco diferente, menos corporativo, não sei.
“A contagem dos sonhos” menciona a renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco. Você teve uma criação católica. Como se relaciona com a fé e a religião?
Sou uma grande admiradora do Papa Francisco. Fé e religião são coisas distintas, e tenho uma relação conflituosa com ambas. A religião muitas vezes é usada para controlar as pessoas, manipulá-las quando elas estão em momentos difíceis da vida. Não gosto de religiões que evitam perguntas. Se você realmente acredita no que você prega, por que impedir as pessoas de fazerem perguntas? Desde que perdi meus pais, tenho sentido um anseio pelo conforto que a fé pode proporcionar. A fé é uma coisa profundamente humana. O mundo é um lugar muito estranho, não dá para ter consciência de tudo à nossa volta e não buscar um sentido. Fé é busca por sentido. Tenho esse tipo de fé, eu acho.
O que você aprendeu sobre o amor escrevendo “A contagem dos sonhos”?
Que amar uma pessoa é se esforçar para conhecê-la.