Ensinamentos do 8 de janeiro

Neste 8 de janeiro, o País completa um ano dos atos que vandalizaram as estruturas físicas dos Três Poderes da República e, mais que isso, tentaram promover uma ruptura no processo democrático conquistado a duras penas após 21 anos de ditadura.

A exemplo de 1964, milhares de pessoas se mobilizaram pregando o anticomunismo e o suposto combate à corrupção, financiadas por grupos empresariais da cidade e do campo e estimuladas por segmentos fascistas das forças armadas e do aparato policial.

O objetivo dos atos era claro: ainda que de forma incompetente, impedir o exercício do mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e promover a instalação de uma ditadura militar que golpeasse, inicialmente, as forças populares que o novo governo representa. Um filme que a história já conhece. Na sequência, a ditadura se estenderia às demais forças democráticas enfiando novamente o País nas trevas do autoritarismo que tantas vidas ceifou, impediu a liberdade de reunião e manifestação e bloqueou durante mais de duas décadas a capacidade criativa de nossa gente.

O atual momento de desenvolvimento do capitalismo em escala mundial carrega nas suas entranhas um elemento novo. Reduziu-se o espaço econômico para experiências democráticas clássicas. Para se manter o atual nível de concentração de rendas e riquezas é necessário políticas econômicas cada vez mais duras no que se refere aos direitos dos trabalhadores, com direito a arrocho salarial crescente e ataque à liberdade de organização e manifestação.

Esse processo já vinha sendo gestado desde o golpe parlamentar efetuado contra a então presidente Dilma Rousseff. Não por acaso, na sequência empurraram goela abaixo da sociedade a “nova” lei trabalhista e a “reforma” da previdência, que visavam precarizar, ainda mais, as condições de trabalho e tornar praticamente impeditiva a aposentadoria da grande maioria dos trabalhadores. Recentemente, o Congresso, de maioria conservadora, abocanhou fatias cada vez maiores do Orçamento da União, através das emendas parlamentares, ao passo em que sinalizou mais arrocho salarial para o funcionalismo público.

A agenda é clara. Arrocho salarial, privatização do Estado, ataque à liberdade de organização e manifestação, estímulo ao preconceito, à misoginia e a pautas religiosas que dividem a sociedade. É assim nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina e no Brasil.

Para bancar esse roteiro, as classes dominantes entenderam que não é mais possível a democracia burguesa clássica, que promove concessões no terreno econômico. Advogam a necessidade de governos claramente de extrema direita, a exemplo de Viktor Orbán na Hungria e Milei na Argentina. Quando não conseguem vencer nas urnas recorrem aos golpes de Estado, como tentaram fazer com Trump nos Estados Unidos e com o 8 de janeiro no Brasil.

Não por acaso, partidos como o PSDB e o MDB, do ponto de vista da disputa nacional, foram varridos no mapa. Os setores dominantes do capital não enxergam mais espaço para políticos estilo Mário Covas, Franco Montoro, Aécio Neves, Fernando Henrique e tantos outros que representavam seus interesses, ao passo que faziam concessões aos setores populares. Precisam de políticos como Bolsonaro, Milei e Trump e, na derrota, de golpes de Estado, para garantir seu programa de governo.

O irônico nisso tudo é que o discurso desse setor belicoso, que representa os interesses do capital financeiro, é aparentemente subversivo. Critica o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Contraditoriamente, está sendo colocada no colo das forças de esquerda a defesa dessas “instituições”, que ao longo dos anos sempre estiveram na linha de frente da defesa de um modelo econômico e político a serviço das classes dominantes.

O 8 de janeiro foi a junção de todos esses fatores. Com um elemento que se constitui o “ovo da serpente”. A anistia ampla, geral e irrestrita concedida após o fim da ditadura, que igualou vítimas e torturadores, eximindo os militares de qualquer punição pelo terrorismo de Estado praticado durante esse período. Nostálgicos dos porões sentiram-se à vontade para urdir um novo golpe.

Tratar os atos de 8 de janeiro como mera baderna, ainda que eivada de amadorismo, representa no mínimo uma grave miopia política diante do que ocorre no mundo. É preciso punir exemplarmente não só os que cometeram os ataques aos Três Poderes, mas principalmente, seus financiadores, políticos com mandato e militares que estiveram nos bastidores orquestrando o golpe. Repetir o mesmo erro cometido por ocasião da anistia só vai adiar o enfrentamento com esses setores golpistas para um momento em que as forças democráticas podem não estar preparadas.

É preciso entender que é importante o ato de defesa da democracia que acontece na tarde deste 8 de janeiro, em Brasília, reunindo representante dos Três Poderes, mas que é fundamental a mobilização ampla da sociedade, como condição básica para deter novas aventuras que atentem contra a democracia.

Somando-se a isso, o mais importante é a realização de mudanças no modelo econômico, visando a distribuição de renda e o empoderamento das forças que se contrapõem ao domínio que a oligarquia financeira submete o Estado brasileiro, impondo seus interesses e valores. Ao mesmo tempo em que se deve apostar na união das forças de esquerda e democráticas, estimulando a mobilização popular, visando as próximas disputas eleitorais. Tarefas nas quais o governo Lula, registre-se, vem atuando timidamente.

 

Por João Salame  (Editor-chefe do Opinião em Pauta)

 

 

(Foto: Ricardo Moraes/Reuters)

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