Em Belém, especialistas e visitantes revelam encanto com a restauração do Palácio Antônio Lemos

Belém (Texto: Erika Morhy )  – “E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há. Azul que é pura memória de algum lugar”. A canção Trem das Cores, de autoria de Caetano Veloso, é pinçada da tese de doutorado em História, defendida por Rosa Arraes, na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2019. E não à toa. O Palácio Antônio Lemos, reformado e restaurado pela Prefeitura de Belém e reaberto ao público no último dia 12 de janeiro, aniversário da capital paraense, já foi evocado por sua cor predominante.

“Desde a sua inauguração, em 1883, o Palacete Provincial é também o Palacete Azul, cor que representa ou passou a representar a municipalidade de Belém. Por longos anos, ele teve sua cor preservada. Essa preservação é explicada porque, muitas vezes, a cor corresponde a um status simbólico de um edifício, principalmente quando este tem referências importantes do poder em uma cidade”, justifica.

Rosa Arraes, conservadora de bens patrimoniais e educadora patrimonial, compara essa prática com o que ocorre em outros casos semelhantes: “Dois exemplos emblemáticos de prédios de governo que, após terem sido considerados monumentos históricos, não puderam mais mudar suas cores, pois elas se configuraram como parte importante da simbologia desses prédios: a Casa Branca (tradução literal do inglês White House), residência oficial e principal local de trabalho do presidente dos Estados Unidos, e ao mesmo tempo, sede oficial do poder executivo naquele país; e a Casa Rosada, também conhecida como Casa do Governo, sede do poder executivo argentino”.

No entanto, uma reforma promovida em 1966 tingiu de róseo o Palacete Azul. A medida gerou debates naquele momento e Rosa Arraes defende as críticas feitas. “Os monumentos são coletivamente referências para nossa identidade e todo o esforço realizado no sentido de preservação de sua história, memória e estrutura física faz emergir o reconhecimento do direito ao passado, assim como permite aos habitantes da cidade a possibilidade de cumprir a dimensão básica do direito à cidadania”, argumenta.

 

O palacete volta a ser azul e se torna Antônio Lemos

O azul é restituído ao palacete na reforma de 1973 e, desde então, tem sido sustentado a cada intervenção. O contexto desta reconciliação com a cor original é intrigante, pela sua relação com as homenagens póstumas ao controverso Antônio Lemos, tão amado por uns quanto odiado por outros.

A retirada vexatória do então intendente de Belém entre os anos 1897 e 1911 para o Rio de Janeiro, em 1912, é um golpe literalmente fatal para ele, que falece no ano seguinte. Ele volta à cidade em restos mortais, depositados no Palacete Azul, batizado então de Palácio Antônio Lemos.

Arquiteta e urbanista, Jussara Derenji garante “que um dos grandes símbolos dessa nossa história mostrada através do Palácio Antônio Lemos é que nele exista a urna com os restos mortais do Lemos. Ele mostra como a história tem essas idas e vindas. Como nós estamos de passagem pela cidade, nós temos a obrigação de manter adiante. Você tem um intendente

que foi muito criticado à sua época – muito louvado e muito criticado também. Em um dado momento, a cidade, os políticos, a conjuntura histórica expulsa essa pessoa. Ele vai pro Rio em situação humilhante e logo depois ele falece. Mas, 40 anos depois, a cidade se repensa e o traz de volta. E ele está lá”.

Jussara Derenji tem se debruçado sobre o palacete tanto como pesquisadora quanto como arquiteta. Enquanto diretora de Patrimônio Histórico, ela esteve à frente do restauro realizado no prédio entre 1993 e 1994. Ela remonta, por exemplo, ao significado da demora na construção do palacete, cerca de 20 anos, e avalia que esse longo tempo representou o custo da construção do poder municipal. Ela narra elementos do primeiro relatório do intendente Antônio Lemos a respeito de como recebeu o palacete em sua gestão.

“Que o prédio estava destruído, cheio de cubículos, cheio de divisões. Isso é um retrato do que ele encontrou: cubículos, divisões políticas, que ele então arrumou. Quando ele arruma fisicamente, ele está arrumando também o poder municipal. Ele tá limpando, clarificando, deixando organizado, que é o que ele fez na cidade: limpou, arrumou, fez limpeza pública, investiu na saúde, em hospitais, em asilos etc.”, analisa.

O principal desafio diante de tanta riqueza que o Palácio Antônio Lemos representa e detém, explica Jussara Derenji, é a manutenção, “manutenção da maneira mais completa: a manutenção do dia a dia, do prédio, do arcabouço; manutenção da lembrança, da história, do que ele significa; manutenção de patrimônio perante novas populações”. Desta forma, não será necessário um investimento alto com recuperação e restauração, nem se corre o risco de perdas irreparáveis.

 

“Tudo é começo e recomeça”

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1942, o Palacete Azul comporta o maior acervo de obras sobre Belém e que, inicialmente, estavam distribuídas nos diversos compartimentos e áreas do prédio. Há 30 anos, criou-se o Museu de Arte de Belém (Mabe) e, no próprio palácio que é a sua sede, o público passou a ter acesso a pinturas, serigrafias e fotografias em espaços configurados sob a linguagem museológica. Uma das exposições está disponível aos visitantes na Sala Antonieta Santos Feio, com o título “Belém no acervo Mabe. Para ler como quem anda nas ruas”.

A mostra celebra o aniversário do museu e reúne obras conectadas com o poema homônimo de João de Jesus Paes Loureiro. Doutor em Sociologia da Cultura e professor de Estética na UFPA, o poeta celebra o restauro no Palacete Azul e reconhece a emoção em fazer parte desta homenagem à arte e à Belém, pelo olhar da diretora do museu e curadora da exposição, Nina Matos. “A Nina teve uma lembrança que me encantou muito, porque usou exatamente os quadros que têm a ver com certos momentos da cidade – seja da história, seja da paisagem – e os agrupou com relação a trechos do poema que ela mesmo escolheu. É uma revelação que ela faz do caráter plástico do poema e, ao mesmo tempo, do caráter poético da cidade”, define.

Em uma espécie de monólogo, o poeta convida leitores a um mergulho na capital paraense e que, na exposição, pode ser feito por meio das obras: “Caminhemos, então, no eterno efêmero em que tudo é começo e recomeça”. Paes Loureiro acredita que o poema, da década de 1990, é atemporal. “A atemporalidade da poesia, geralmente, é uma relação interpretativa do leitor, mas, o poema tem que provocar isto. Se o poema fosse pura descrição das ruas da cidade, poderia, no futuro, quando tivesse uma outra realidade urbana, ficar um pouco desconectado dela. Mas, da maneira como ele tá escrito, não, porque ele rememora, mas, ao mesmo tempo, ele reflete, o que tira do poema apenas uma sensibilidade momentânea”.

Da Praça do Relógio ao bairro da Condor, o mergulho passa a ser em questões como o tempo e efemeridade da vida. “Para mim, a poesia é uma forma de conhecimento, mas que é intuída pela sensibilidade, não pelo raciocínio filosófico, matemático ou urbanístico. No caso de um poema sobre uma cidade, como o ‘Para ler como quem anda nas ruas’, é a sensibilidade que provoca a reflexão. E a reflexão poética é uma forma de verdade, que essa permanece sempre”, defende Paes Loureiro.

 

Mãos à obra

Uma segunda mostra ganha destaque na reabertura do Palácio Antônio Lemos, intitulada “Arte na obra”. Fotografias, painéis e depoimentos em vídeo estão dispostos na Sala Theodoro Braga reverenciando as 83 pessoas de três nacionalidades que se dedicaram à recuperação e ao restauro do patrimônio. Judeus atuaram na luminotécnica; franceses, nos audioguias; e brasileiros, entre baianos, maranhenses e paraenses, em diversas áreas do processo.

A iniciativa encanta visitantes, como as irmãs Ruth de Araújo e Regina Oliveira, que acompanhavam a amiga Marjorie, de 82 anos de idade, para quem sobra alegria. “Estou amando! Tudo muito lindo e interessante. Não tinha ideia que tinha isso em Belém do Pará. A homenagem aos operários, eu nunca vi isso em lugar nenhum. Até me emocionei por esse reconhecimento das pessoas”.

 

Compromisso e valorização

A reforma do Palácio Antonio Lemos pela atual gestão foi decidida logo após o prefeito Edmilson Rodrigues assumir novamente a Prefeitura de Belém , em janeiro de 2021, e visitar o prédio histórico que, na ocasião estava fechado, em estado extremo de deterioração, resultado de anos de abandono e descaso.

Ainda em 2021 foi realizada a obra de pintura externa do prédio e restauração de todo o teto do Palácio Antônio Lemos. Em 2022, após avaliação especializada, a Prefeitura deu início à restauração completa do prédio, realizada em 18 meses de obras, com um investimento municipal de R$ 26 milhões.

O espaço recebeu inúmeros serviços de restauro e recuperação, assim como a modernização dos sistemas de segurança, elétrico e contra incêndios. Para o prefeito Edmilson Rodrigues, mais do que a reforma física do prédio, o mais importante é o resgate e a valorização da memória histórica que o Palacete Azul significa para Belém. “Agora o palácio pode voltar a ser a sede do governo municipal, da municipalidade. A restauração de todos os espaços está à altura da riqueza histórica de Belém”, conclui.

A volta do fluxo de pessoas no Palacete Azul garante vida nova ao patrimônio, que já tem em sua trajetória a forte imagem do encontro entre a suntuosidade europeia e a suntuosidade amazônica, quando o prefeito Edmilson Rodrigues, em seu segundo mandato no executivo municipal, convidou Mestre Verequete para uma audiência no gabinete palaciano e o vislumbrou subir os 35 degraus de mármore adornados com tapete vermelho. (Foto: Comus/Prefeitura Belém)

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