Dois anos de guerra na Ucrânia: um Mundo polarizado por conflitos armados?

Sejam quais forem as consequências da guerra da Ucrânia, o certo é que ela já alterou por completo o panorama geopolítico. Um novo bloco de países se formou, mesmo que ainda informalmente. China, Rússia e Irã, por motivos distintos, fortalecem cada vez mais seus laços no plano militar, econômico e político.

Por sua vez, o bloco da OTAN está cada vez mais consolidado, tendo os EUA a frente, em aliança com a União Europeia e outras forças regionais, como Inglaterra, Israel, Canadá, Japão, Taiwan e Austrália.

Os dois blocos disputam a hegemonia do sistema internacional, sob a lógica do mercado, ou seja, as rédeas do capitalismo contemporâneo. Um mais voltado para a globalização baseada no mercado de capitais e a especulação financeira, com os EUA e a União Europeia à frente. Outro dedicado à produção e venda de mercadorias, cujo grande motor é a China. Ou seja, não há nada em disputa que não seja o comando do sistema capitalista.

 

Brasil como mediador

Um dos poucos interlocutores entre esses dois blocos é justamente o Presidente Lula, que coloca o Brasil num papel fundamental no cenário internacional. Sem poupar críticas aos dois lados da disputa intercapitalista, Lula aponta para um caminho de paz para dirimir conflitos, e para a necessidade premente de uma mudança da composição do Conselho de Segurança da ONU.

A ONU é o mais fragilizado dos organismos internacionais, diante do constante desrespeito a que seu papel de equilibrar interesses e evitar conflitos internacionais vem sofrendo desde a virada do milênio, sobretudo pelos países que têm direito de veto no seu Conselho de Segurança (EUA, Inglaterra, Rússia, China e França). São justamente os maiores produtores de armas.

Primeiro, pelos EUA e seus aliados, que intervieram na Iugoslávia, invadiram o Iraque, desestabilizaram a Líbia e a Síria, e tomaram o Afeganistão. Depois pela Rússia, que adota uma política cada vez mais agressiva no trato com antigas repúblicas soviéticas em sua vizinhança (A mais recente foi a invasão da Ucrânia), e amplia suas operações para a África, oferecendo milícias aos governos que enfrentam problemas com grupos armados do fundamentalismo islâmico.

No entanto, o caminho para retomar a ONU como centro de mediação da paz entre países em todo o Mundo é árduo. E vai exigir da diplomacia brasileira uma postura dura e ao mesmo tempo equilibrada, para isolar os países mais refratários a esse propósito, ao mesmo tempo angariar crédito entre os centenas de membros da organização.

 

Situação dos envolvidos na guerra da Ucrânia

A Ucrânia, obviamente, é um país destroçado. Sua economia só consegue sobreviver graças ao apoio da União Europeia e porque as tropas russas estão concentradas na faixa leste do território, longe de Kiev e da faixa de produção de cereais, a oeste do país.

Bilhões de créditos de guerra da UE e dos EUA foram aprovados em favor da Ucrânia. Oficialmente o país admite que 31 mil soldados foram mortos, 10 mil civis mortos e outros 20 mil feridos, além de 8 milhões de cidadãos que imigraram ou tiveram que ser deslocados. Mas este número está longe do razoável.

A Rússia enfrentou 13 pacotes de sanções econômicas por parte da UE. Empresas e empresários russos tiveram seus investimentos sequestrados pelo Ocidente. Para compensar as perdas no comércio com a Europa, o país passou a vender o grosso de sua produção de petróleo e gás para a China e a Índia (e parte no mercado paralelo), ampliando e renovando os investimentos na indústria de armas.

A União Europeia também atravessa momentos de instabilidade. O parlamento e a cúpula da UE são dominados por um grupo conservador, que segue a política de guerra dos EUA/OTAN cegamente. O resultado disso é muito dinheiro investido numa guerra perdida e uma política de juros que só agrada aos banqueiros e piora as condições de vida dos europeus.

As taxas de crescimento previstas para 2024 e 2025 são baixas, e o boicote ao gás russo atingiu em cheio a Alemanha, motor da economia da UE. Cresce a força da extrema-direita em toda a Europa. Aí pesa a questão da imigração, explorada pelo discurso demagógico e xenófobo do neofascismo.

Nos EUA a retomada do cenário de guerras e conflitos (Ucrânia e Oriente Médio) voltaram a alimentar os investimentos militares em armas e munições. Mas a eleição do final deste ano pode mudar tudo, caso a Justiça não impeça Donald Trump de se candidatar à Presidência.

Se a candidatura de Trump for aceita, a extrema-direita tem grande chance de derrotar os democratas e rever parte da política externa do país nos últimos anos, com Joe Biden. A questão dos imigrantes, que entram diariamente aos milhares pela fronteira com o México, pode ser decisiva para uma nova vitória dos republicanos.

 

R$ 11 trilhões a mais com armas em 2023

A julgar pelo montante de recursos gastos na compra de armas e munições nos últimos dois anos, fica evidente que o Mundo atravessa um período de grande instabilidade.

O Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres, apurou um crescimento de 9% nos gastos com armas em 2023 em comparação com 2022, chegando a US$ 2,2 trilhões (cerca de R$ 11 trilhões no câmbio atual). Em termos nominais e relativos, é o maior valor dos 65 anos da série histórica da publicação.

Só os Estados Unidos empenharam 41% do gasto militar total do planeta, seguidos pela China (10%) e a Rússia (5%). Tudo o que os americanos despendem no setor equivale a pouco mais do que o gasto dos 14 outros países do ranking juntos.

A aliança militar comandada por Washington, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), teve um aumento substancial de gastos, reflexo da guerra na Ucrânia: 8,5% do bolo total, excetuando os EUA. De acordo com o IISS, apenas dez dos 31 países membros da OTAN cumprem o objetivo de dedicar 10% do PIB aos gastos militares, embora 19 o tenham aumentado.

No caso dos rivais dos EUA na Guerra Fria 2.0, o IISS ressalta que os chineses aplicaram o equivalente a US$ 407 bilhões e não os US$ 219,5 bilhões nominais. Os russos, US$ 296 bilhões na prática, e não US$ 108,5 bilhões.

Apesar das dificuldades, a Ucrânia elevou em nove vezes seu gasto militar próprio, para US$31,1 bilhões, entrando no top 15 pela primeira vez, em 13º lugar. O valor não inclui a ajuda externa, quase dez vezes mais que isso desde o início do conflito.

Os analistas apontaram para o desenvolvimento de um novo pacto no Indo-Pacífico, como a aliança militar entre EUA, Austrália, Japão e Reino Unido, como novo fator para uma corrida armamentista. Em 2023, o aumento real de despesas na região asiática foi de 5%.

 

Alguns pontos a serem considerados

1) As potências ocidentais (UE e EUA) apostavam num resultado melhor da Ucrânia no terreno militar. Mas diante do fracasso da contra ofensiva de 2023 a possibilidade de um acordo  em condições favoráveis à OTAN são limitadas. Hoje impera uma visão pessimista.

2) O avanço das tropas russas na Ucrânia deve propiciar a Putin uma situação privilegiada, seja para avançar ainda mais no terreno seja para negociar um cessar-fogo. Os russos provavelmente trabalham com a meta de ocupar a faixa de território do Rio Dniepre para leste (abrangendo todo o Donbass), até as fronteiras de seu país.

3) No entanto, a adesão da Finlândia e Suécia à OTAN fecha o cerco na fronteira Norte da Europa com a Rússia (aumentando em mais 1.300 km), o que enfraquece a justificativa de Putin para a invasão da Ucrânia.

4) Por sua vez, Putin consolidou uma aliança política, econômica e militar com a Bielorrússia, Irã e Coréia do Norte, fornecedores de armas e munições, além de abrir canais de aproximação com a Índia, hoje grande consumidora de petróleo russo.

5) A China aposta na sua Nova Rota de comércio internacional, visando abrir caminhos com braços pela Europa e outros pelo Oriente, visando escoar a produção de suas mercadorias com maior agilidade até os mercados da África, Oriente Médio e América Latina. Daí a razão pela qual os chineses não veem com bons olhos e atuam de forma mais ponderada no que diz respeito a conflitos militares.

6) A OTAN ganhou nova vida, aumentando a produção e venda de armamentos e a adesão de diversos países europeus aos 2% de orçamento para o setor militar. Essa meta virou plataforma do bloco conservador na União Europeia para as próximas eleições. Já está em curso uma gigantesca manobra militar, que pretende envolver 500 mil efetivos dos diversos membros da OTAN, em torno do Mar Báltico até maio.

7) A eleição presidencial nos EUA e as eleições para o Parlamento Europeu, em junho, têm especial importância para a extrema-direita. As previsões são de uma vitória, caso Donald Trump consiga registrar sua candidatura, e dos neofascistas elegerem a terceira maior bancada de deputados na União Europeia. Esse é um ingrediente de grande instabilidade política internacional.

8) O uso intensivo de drones e barcos por controle remoto deve revolucionar a indústria militar nos próximos anos, mudando completamente o tipo de armamento empregado nos conflitos contemporâneos. São muito mais baratos, mais leves, certeiros e de fácil deslocamento em qualquer terreno. Da mesma forma, o uso de tropas em número menor, com a característica de comandos de assalto de alvos a serem conquistados. Tudo isso já aparece na guerra da Ucrânia.

9) Finalmente a possibilidade dos dois blocos se envolverem cada vez em conflitos armados, como já ocorre hoje na Ucrânia e no Oriente Médio (Israel x Palestina). Há quem analise que as grandes potências, com força nuclear, não devem participar diretamente de guerras localizadas, mas atuar nos bastidores, fornecendo armas e tecnologia a seus aliados ou nas negociações de interesses que envolvem esses confrontos. Outros analistas alertam para o perigo iminente de uma nova guerra mundial, o que teria consequências imprevisíveis para o futuro da humanidade e do Planeta.  (Foto: BBC)

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

Relacionados

plugins premium WordPress