Dois anos de guerra na Ucrânia: Até onde o conflito pode arrastar a humanidade?

Henrique Acker (correspondente internacional)  – Houve quem apostasse num confronto rápido, em que a Rússia aniquilaria com facilidade as tropas ucranianas. Esse diagnóstico caiu por terra quando se percebeu que o conflito estaria vinculado a uma disputa de interesses dentro do sistema mundial de mercado. Hoje a guerra da Ucrânia é encarada pelos analistas de política internacional muito além de uma disputa local ou regional.

A invasão russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022, foi um marco para uma profunda alteração no cenário geopolítico, levando ao alinhamento de dois blocos. De um lado o eixo Washington (EUA)/Bruxelas (União Européia), que responde por um capitalismo voltado para o sistema financeiro e especulativo. De outro lado o bloco formado por China/Rússia/Irã, unificando o país que é o maior produtor e consumidor de mercadorias, com duas outras potências militares e grandes produtoras de petróleo e gás.

A virada do regime político na Ucrânia, a partir dos acontecimentos de 2014 na Praça Maidan, quando o governo de Victor Yanukovich (aliado de Moscou) acabou deposto, é um marco no conflito. A postura dura como Kiev passou a tratar a região do Donbass (leste do país), cuja população majoritariamente de origem russa reivindica uma aproximação com o país vizinho, também é outra justificativa apontada por Vladimir Putin para a invasão da Ucrânia. Mas é preciso recuar no tempo para compreender o que levou ao conflito.

 

Fim da guerra-fria e acordos EUA-Rússia

Para entender a guerra da Ucrânia é preciso voltar aos anos 90, com a derrocada da URSS e a desintegração de seu território, formado por um conjunto de repúblicas que posteriormente se tornaram independentes. O fim da URSS e dos regimes do socialismo real em todo o Leste Europeu, acabou também com o Pacto de Varsóvia, aliança militar dos países sob influência soviética que prevaleceu em todo o período da guerra fria.

“Acreditamos que a expansão da Otan para o leste é um erro, e um erro sério”, advertiu Boris Yeltsin, o primeiro presidente pós-soviético da Rússia, em entrevista coletiva concedida em 1997. A declaração foi dada ao lado do então presidente dos EUA, Bill Clinton, em Helsinque (Finlândia), onde os dois assinaram documento oficial sobre controle de armas.

“No cenário atual, não é do interesse da Otan ou dos EUA que os Estados [do Leste Europeu] recebam a adesão plena à Otan e suas garantias de segurança”, diz um memorando do Departamento de Estado Americano de 1990. Na época, aqueles países ainda estavam saindo da influência soviética, com o fim do Pacto de Varsóvia.

“Não desejamos, de forma alguma, organizar uma coalizão anti soviética, cuja fronteira seja a fronteira soviética. Tal coalizão seria percebida de forma muito negativa pelos soviéticos.”, segue o texto do memorando. Apesar disso, desde 1990, a Otan realizou cinco rodadas de ampliação para incluir antigos territórios da União Soviética e vários ex-Estados do Pacto de Varsóvia.

 

Ucrânia levaria a Otan para a fronteira com a Rússia

Décadas depois, o presidente russo Vladimir Putin acusa a Aliança Atlântica de quebrar uma promessa feita em 1990, de que a Otan jamais iria expandir-se para leste, afirmando que o Ocidente usa a Organização, que hoje conta com 30 países membros, para cercar militarmente seu país.

É o que atesta Bárbara Motta, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), em entrevista à CNN Brasil. “O que percebemos nos últimos anos foi uma contínua expansão em vários países: Lituânia, Estônia, Polônia. E, agora, a promessa feita em 2014 da possibilidade da Ucrânia entrar, fazendo com que a Otan literalmente fosse vizinha da Rússia”.

Já o professor Vitelio Brustolin, do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF (INEST) e pesquisador da Universidade de Harvard, lembra que em 1990 o então presidente dos EUA, George Bush, prometeu ao líder russo Mikhail Gorbachev que a Otan não “se moveria nem uma polegada para o leste” além da Alemanha, se aquele país fosse unificado. “Essa foi uma promessa verbal e ela foi descumprida.”

 

Paz rechaçada por Washington e seus aliados

Em entrevista concedida em Outubro de 2023, o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder explicou como tentou auxiliar na negociação de paz entre a Ucrânia e a Rússia em 2022, ocorrida em março daquele ano, na Turquia. O jornal ucraniano, Ukrainska Pravda, publicou  suas observações.

Moscou tinha um plano de paz concreto traçado, segundo Schröder. Baseava-se em cinco pontos: “A rejeição da Ucrânia à adesão à Otan, duas línguas oficiais na Ucrânia, autonomia dos territórios do Donbass, garantias de segurança para a Ucrânia e negociações sobre o estatuto da Crimeia”.

O antigo líder alemão disse que os Estados Unidos não concordaram com as conversações de paz. “Os únicos que poderiam resolver a guerra pela Ucrânia eram os americanos”, enfatizou Schröder.

“Durante as conversações de março de 2022, em Istambul, com Rustem Umierov (ministro da Defesa da Ucrânia), os ucranianos não concordaram com a paz porque não lhes foi permitido fazê-lo. Eles tiveram que coordenar primeiro tudo o que conversaram com os americanos”, disse Schroder.

 

Alto funcionário ucraniano confirmou

As observações do ex-chanceler alemão foram reforçadas recentemente por um alto funcionário ucraniano. Em novembro de 2023, Davyd Arakhamia concedeu entrevista ao canal de TV ucraniano 1+1. Arakhamia é o líder parlamentar do partido político do presidente da Ucrânia, Volydmyr Zelensky. A entrevista também foi divulgada pelo Ukrainska Pravda.

Arakhamia foi um dos representantes da Ucrânia nas conversações de paz com a Rússia na Turquia, em março de 2022. Na entrevista, admitiu que os russos queriam de fato a paz e que a neutralidade da Ucrânia em relação à Otan “era a coisa mais importante para eles”.

“Eles [os russos] estavam preparados para acabar com a guerra se concordássemos com a neutralidade, e nos comprometêssemos que não aderiríamos à Otan”, disse o alto funcionário ucraniano, de acordo com o jornal Ukrainska Pravda.

No entanto, como reconheceu mais tarde o ex-primeiro-ministro israelense Naftali Benet, indicado por Zelensky como mediador das negociações promovidas pela Turquia, a possibilidade de um acordo foi “bloqueada pelos EUA, Alemanha e França”.

“Quando voltamos de Istambul, o primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson, veio a Kiev e disse que não assinaríamos nada com eles e que íamos apenas lutar”, confirmou Arakhamia na entrevista publicada pelo Ukrainska Pravda.

 

Premier britânico prometeu armas e munições

Não por coincidência, Boris Johnson fez uma visita a Kiev nos dias 8 e 9 de abril de 2022, logo após o fracasso das conversações na Turquia. De acordo com a BBC, a visita aconteceu um dia depois do Reino Unido anunciar o envio do equivalente a 100 milhões de libras em armamentos para a Ucrânia.

Na ocasião, em entrevista coletiva em Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro, o Johnson confirmou uma remessa de equipamentos militares que incluía mísseis antiaéreos Starstreak e 800 mísseis antitanque.

Em declaração dada após o encontro com Zelensky, Boris Johnson afirmou que a “Ucrânia conseguiu o improvável e repeliu as forças russas à entrada de Kiev, alcançando um dos maiores feitos militares do século 21”. Mas há controvérsias sobre o assunto.

“Tomamos a decisão de reduzir drasticamente a atividade militar na direção de Kiev e Chernihiv. Esperamos agora que o governo ucraniano tome decisões correspondentes e que sejam criadas as condições para um futuro trabalho normal”, disse Alexander Fomin, vice-ministro russo da Defesa, na mesa de negociações, em Istambul.

 

Putin apresentou rascunho do acordo de paz

De acordo com o jornal britânico The Guardian, o ministro dos  Negócios Estrangeiros turco, Mevlüt Çavuşoğlu, mostrou-se otimista com o avanço das negociações promovidas por seu país. Çavuşoğlu, que visitou a Rússia e a Ucrânia afirmou: “Claro que não é fácil chegar a acordo enquanto a guerra está a decorrer, enquanto civis são mortos, mas gostaríamos de dizer que está a ganhar-se tempo… vemos as partes próximas de um acordo.”

Na ocasião, o Guardian também noticiou que a Turquia estava pronta a promover uma reunião entre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e o presidente russo Vladimir Putin. Como se sabe, a tentativa de acordo não prosperou.

Em encontro realizado em junho de 2023 com representantes de sete países africanos, Vladimir Putin aproveitou para apresentar um documento, que segundo ele foi assinado pela delegação ucraniana, nas conversações de paz de Istambul, em março de 2022.

“Depois de nós, como combinado, afastarmos as nossas tropas de Kiev, as autoridades de Kiev, tal como os seus líderes costumam fazer, mandaram tudo para o lixo da História”, acrescentou Putin.

 

Ponta do Iceberg

Um acordo de paz só não foi possível até aqui, dois anos depois da invasão russa, porque há interesses poderosos em jogo. Muito mais do que os milhares de mortos, mutilados e feridos, a destruição brutal de cidades inteiras, e o discurso da defesa da “liberdade” e da “democracia”, a guerra da Ucrânia mobiliza enormes recursos financeiros, estimula a corrida armamentista e aponta para uma nova etapa das disputas econômicas, financeiras e militares no Mundo.

O conflito na Ucrânia é parte do embate entre forças do grande capital, que disputam a hegemonia mundial, num cenário que envolve outros países e regiões do Planeta. Há quem fale numa terceira grande guerra mundial a caminho, muito mais abrangente e desastrosa que as duas primeiras. Outros analistas, mais ponderados, enxergam uma série de conflitos simultâneos, como ocorre na Palestina, administrados pelos dois blocos hegemônicos.

Seja como for, a guerra da Ucrânia trouxe à tona as contradições de um sistema que concentra riquezas e aprofunda desigualdades em todos os continentes. E com elas a incapacidade dos atuais organismos internacionais de mediação de conflitos, como a ONU, cada vez mais desmoralizada pelos países que detêm o poder de veto em seu Conselho de Segurança. É o que pretendemos abordar nas próximas matérias sobre a guerra da Ucrânia.

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

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