Crônicas de um tempo de consumo

(Portugal, ano 23 do século XXI da Era Cristã)

De Lisboa (Henrique Acker)  – Do alto das minhas seis décadas de existência passo a refletir sobre a vida. A solidão nos conduz ao que é essencial, não é preciso disfarces.

Decidi colocar para fora as impressões sobre o nosso Mundo, pessoas, sentimentos, acontecimentos que nos rodeiam nesses tempos, ainda que sejam observações muito pessoais.

Novidade? Certamente não.

Tantos outros já o fizeram com muito mais profundidade ao longo da História.

Por isso ainda nos resta o direito de conhecer o que se passou Mundo afora, desde que há registros em escrita de cronistas, poetas, jornalistas, escritores e historiadores.

É um tempo difícil, repleto de angústias, dúvidas e, sobretudo, superficialidade.

Globalizaram a ganância, fazendo do Planeta um laboratório das gentes perdidas, buscando sabe-se lá o que.

Consome-se até mesmo a sensação de genuinidade dos lugares, festas e tradições. Para tudo há conselheiros de plantão, a dar receitas de sucesso e superação na internet. São coachs, youtubers e outros personagens com discurso pronto e acabado.

Sem o menor pudor, alguns se acham no direito de tomar os bairros, os espaços, as ruas, os bares e até mesmo as casas e as histórias dos outros, talvez pela crença de que assim estarão dando algum sentido às suas pobres vidas.

O vinho é bom ou é ruim pelo preço ou pelo rótulo da garrafa. Nem é preciso saber de onde veio, de qual vinícola, que uvas foram maçeradas, se foram com os pés ou em depósitos de metal, em que terras foram cultivadas.

A cerveja só é boa porque é belga ou alemã.

O show do artista é medido pelo número de pessoas que assiste. Elas não precisam conhecer as músicas, nem prestar atenção aos novos arranjos. Os músicos que acompanham são como arroz de festa, na sua maioria subcontratados para tocar. E assim tocam a vida de show em show, sem rosto, sem identidade, atrás do cachê. Mais vale o volume insuportável das caixas de som…

Ligo a TV e os noticiários, todos em sintonia com uma vasta produção sobre os mesmos acontecimentos, despejam imagens combinadas com trechos de depoimentos de testemunhas e repórteres. Logo vem os comentários de “especialistas”, tipos lacradores insensados por um pretenso conhecimento de todos os assuntos. São os “tudólogos”.

Fala-se de guerra com uma naturalidade espantosa, da mesma forma como todos os dias tomamos café, trocamos de roupa, fazemos nossas necessidades e vamos dormir.

A superficialidade da mídia reduz o Mundo e os conflitos a meras disputas entre o “bem” e o “mau”. Paz? Para que? O importante é quem vai ganhar a guerra. As mortes de um lado são mais importantes que as do outro, o inimigo não tem alma, família e nem sentimentos.

As tragédias são incorporadas ao espetáculo do noticiário, ainda mais quando envolvem os outros, os pobres, os periféricos. O modo de vida, as religiões, as culturas, conceitos e pré-conceitos dos demais são tratados como problemas, que podem ser absorvidos, desde que se rendam ao modo de ser admissível pelos mais ricos. Caso contrário, seguem como estranhos a serem segregados e bombardeados.

O tempo corrido é dinheiro, não há espaço para a reflexão, para alcançar a complexidade dos desafios, muito menos para soluções criativas.

A participação popular foi reduzida a mera formalidade. Agora são abaixo-assinados ou consultas virtuais, nas quais os internautas podem escolher entre as respostas A ou B, sem que isso resulte necessariamente em qualquer solução concreta dos problemas.

Creches e escolas tornaram-se depósitos dos pequeninos e jovens. Certamente a responsabilidade não é dos professores, cuidadores e educadores.

O que sabemos das vidas dos nossos meninos e meninas? O que leram? O que compreenderam do que leram? Nos surpreendemos com atitudes e sentimentos que desconhecíamos em suas personalidades, cada vez mais forjadas por aplicativos, jogos e séries. Que papel cumprem os pais?

A aceleração do tempo vivido está reduzindo os seres humanos a meros consumidores de produtos, afetos, gostos, sensações, prazeres, em doses cada vez menores. Tudo é contabilizado.

Não nos permitimos ao desfrute de permanecer em algum local, só para admirar a beleza das cores, os sons que nos cercam ou observar os pássaros e as pessoas que passam e conversam.

O café ou a cerveja com os amigos é cada vez mais uma raridade, porque estamos sempre correndo. Sentar e conversar é “perda de tempo”.

Não prestamos a atenção sequer nos rostos, nos olhos e na forma como as pessoas falam e muitas vezes nem no que dizem. Não nos damos o direito de perceber as emoções alheias. Alguns sequer nos permitem enxergá-las, guardando mágoas e certezas só para si. É o medo de dividir problemas e mostrar fragilidade.

Quantos e quantas ao nosso lado estão largados, desajustados, feridos e não encontram espaços para desenvolver suas capacidades? Muitos veem seus sonhos desmanchar ou simplesmente só como sonhos mesmo. Uma humanidade que repete gestos mecanicamente todos os dias, sobrevive adoecida.

As relações começam e terminam sem que os casais se conheçam a fundo. “A fila anda”, é o que mais se ouve da nova filosofia de consumo do amor. Quem sofre precisa aprender a “desapegar”, como se os sentimentos e as pessoas fossem objetos que acumulamos.

As próximas gerações vão conviver com seres de inteligência artificial (IA). Talvez possam até relacionar-se emocionalmente com eles. Ou simplesmente transformá-los nas tropas de choque, repressão e militares usadas para disputar o domínio do Planeta. E isso será um tremendo problema, porque a IA levada ao extremo pode gerar seres com autonomia plena, em condições até de superar as capacidades dos humanos.

Há esperança de felicidade para a humanidade? Vamos sucumbir à racionalidade do Mundo desigual e superficial que criamos? Esses são desafios que estão postos para agora, não há mais como adiá-los. (Henrique Acker)

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