Célia Xakriabá: ‘São assassinos. Estão usando o Congresso pra matar o nosso direito’

O Opinião em Pauta ouviu a deputada Célia Xakriabá, principal liderança indígena da Câmara. Para ela, as decisões da última quarta-feira (24), denominada pela parlamentar como a “noite dos retrocessos”, mostra o instinto conservador dos congressistas de assassinar os direitos indígenas. “E pior: é um genocídio legislado, usando a estrutura do Congresso Nacional para matar o direito indígena”.

 

Thiago Vilarins – Em protesto pelas decisões do Congresso Nacional, na noite da última quarta-feira (24), que retrocederam as políticas voltadas aos povos originários, que avançaram nestes poucos meses do governo Lula, a deputada indígena Célia Xacriabá (PSOL-MG) denominou os parlamentares envolvidos como “assassinos do povo indígena”.

“A caneta tem assassinado os nossos direitos. Na verdade, eles só sofisticaram as armas, mas a intenção de matar ainda é a mesma. Quem rouba a terra dos povos indígenas tem nome, tem endereço, tem gabinete… Falam que nós que ocupamos territórios, como que se fossemos invasores. O Brasil começa por nós, mas não leva em consideração o povo originário que defende, não só um bem emprestado a nós, mas, sobretudo, um bem emprestado a humanidade. São assassinos. E pior: é um genocídio legislado, usando a estrutura do Congresso Nacional para matar o direito indígena”, bradou em entrevista ao Opinião em Pauta.

Foram duas decisões tomadas que afetaram diretamente os direitos indígenas. No início da noite daquela quarta-feira, a deputada, que era membro da Comissão Mista instalada no Congresso para discutir a Medida Provisória (MP 1158) que criou a estrutura de ministérios do atual governo, foi voto vencido em relação ao relatório do deputado Isnaldo Bulhões Jr (MDB-AL), que retirou do Ministério dos Povos Indígenas a competência para tratar das demarcações dos territórios indígenas e passando a atribuição ao Ministério da Justiça. Apesar da sua luta, quase solitária, pela rejeição, foram 15 votos favoráveis ao relatório contra apenas três contra.

Aprofundando a crise e os ataques aos direitos indígenas, a Câmara também resgatou, já no fim daquela noite, o PL 490 que estava congelado há dois anos. A casa aprovou, de forma relâmpago, em apenas 29 minutos, o requerimento de urgência para votar o projeto que representa o genocídio dos povos indígenas do Brasil ao incluir na constituição a tese do Marco Temporal.

Este projeto considera a data de 1989 como marco para o reconhecimento da ocupação dos territórios indígenas, desrespeitando o direito originário à terra. Célia Xakriabá chegou a subir na tribuna e fez um discurso inflamado ao lado dos seus companheiros de partido (ao qual chamou de bancada do cocar). Clamou pela rejeição dessa “violência contra os povos indígenas” orquestrada pelos “novos ‘Cabrais’ do século XXI, vestidos de gravata e paletó” que tentam “estuprar não somente os direitos, mas também a terra”. “É um ataque à vida, ao planeta e não só aos nossos povos. É uma questão humanitária. Aqueles que votarem a favor do PL 490 são nossos inimigos anti-humanitários”, discursou.

Célia Xacriabá: “É um ataque à vida, ao planeta e não só aos nossos povos. É uma questão humanitária”. (Foto: Reprodução/TV Câmara)

 

A deputada, que também é a presidente da Comissão da Amazônia da Câmara, conversou com a reportagem do Opinião em Pauta no salão verde da Câmara após estes dois momentos desta noite que ela classificou como a “noite absurda do retrocesso”. Ela falou sobre o impacto dessas decisões, das articulações para tentar revertê-las, das tentativas da bancada ruralista e dos bolsonaristas para enfraquecer as políticas progressistas do presidente Lula e da reação de membros do governo na Casa que comemoram a aprovação da MP 1158 com este modelo que estabeleceu mudanças significativas nos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Confira a entrevista:

 

A senhora protestou muito durante a sessão da comissão mista sobre a Medida Provisória que alterou a organização dos ministérios definida pelo presidente Lula. Como a senhora avalia essa decisão que acabou esvaziando o Ministério dos Povos Originários, com a retirada da sua atribuição a demarcação dos territórios indígenas?

É a decisão mais de retrocesso que poderia. Esse é o Brasil que caminha pro futuro? Fala muito de progresso, mas, no entanto, se o progresso é pensar que os povos indígenas é a única alternativa, que a demarcação de território indígena é a solução pra barrar as mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, o Congresso dá esse gesto truculento a uma medida que organiza toda estrutura do atual Governo. Nesse momento, pensar demarcação dos territórios indígenas, dentro da atribuição dentro do MPI (Ministério dos Povos Indígenas), é exatamente pensar o coração dessa estrutura. Pensa o ministério dos povos indígenas sem a demarcação. A pergunta vai ser reversa: a quem interessa a demarcação dos territórios indígenas não permanecer exatamente dentro do ministério? Então, neste momento está sendo contraditório. Teve vários parlamentares na comissão que falaram: a atribuição de cada pauta tem que ficar de acordo a cada ministério. Concordo. Então, não tem ninguém melhor pra cuidar da demarcação dos territórios indígenas do que, exatamente, esse ministério que foi criado. Nesse sentido, essa decisão parece muito mais uma decisão tutelar da época do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) antes da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que dizia que o povo indígena não tinha competência de tomar decisão sobre o que queríamos. E agora, nós temos indígenas advogado, indígena que são eleitas a deputada, nós temos indígena médico… e ninguém melhor do que isso pra garantir, exatamente, o destino da demarcação dos territórios indígenas. E fazemos isso de maneira responsável, não é de maneira irresponsável. Tem estudo, tem o estado de identificação, tem a portaria… tudo isso seguindo os ritos, em conformidade, também, como era antigamente dentro do Ministério da Justiça. Então, nós vivemos esse momento como afronta. Uma afronta porque tem uma mulher indígena a frente do ministério dos povos indígenas. Vivemos isso como afronta porque tem uma bancada ruralista aqui no Congresso com outros interesses. Vivenciamos esse momento como único na história. Desde a posse, em janeiro, a demarcação dos territórios indígenas é a política mais aprovada deste atual governo. A resposta que a sociedade está dando não é suficiente pra esse Congresso? E tenho dito mais: o Congresso aprova essa medida extremamente antivilizatória, porque não se pode caminhar pra frente fazendo política de retrocesso.

 

Esse retrocesso que a senhora aponta está ligado ao perfil mais conservador dos parlamentares do Congresso que tenta bloquear o avanço das pautas progressistas?

Com certeza. Na verdade, é isso que destina essas decisões. É tão absurdo que ninguém acreditava. E a celeridade também das decisões é o que nos assusta também. O direito dos povos indígenas está sendo leiloado, tanto o avanço no executivo como também essa Casa que pauta, todos os dias, o retrocesso. São mais de 1.025 projetos de lei, em grande maioria, em retrocesso ao direito dos povos indígenas. Nessa casa ninguém fala que é contra os povos indígenas, mas, ao mesmo tempo, não dá pra dizer que gostam dos povos indígenas, que gostam dos nossos cocares, se arranca o nosso coração, negando o direito territorial.

 

E agora, o que pode ser feito pra reverter essa situação?

Estamos articulando aqui pra alterar o texto pra quando ele vier pra o plenário, na próxima semana, mas ainda sim é uma força tarefa muito maior. Mas é preciso continuar articulando. Começamos assim que finalizou a comissão, e estamos em grande mobilização.

 

O que a senhora achou da reação de membros da base governista terem comemorado a aprovação deste texto com o encolhimento dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Originários?

Nós não iremos negociar o nosso princípio. Então, nós sabemos do lado que nós estamos: do lado certo da história. Eu conversei com alguns membros do governo e eles firmaram apoio a nossa solicitação de alteração, solicitando que, pelo menos, constasse no texto ‘em articulação junto ao Ministério de Povos indígenas’ e, ainda assim, essa redação foi rejeitada É pra isso que agora a gente vai caminhar, também, pra continuar a negociação. Mas, nesse momento, estamos fazendo frente da nossa posição, e não estamos negociando.

 

A noite deste dia ainda trouxe mais uma trágica surpresa: a aprovação do requerimento de urgência para o projeto de lei do marco temporal na demarcação de terras indígenas. A aprovação foi muito comemorada pela bancada ruralista e por bolsonaristas da Casa. Como a senhora enxergou essa manobra e a reação destes parlamentares?

Eu disse no plenário e grito aqui também: ‘são assassinos do povo indígena’. A caneta tem assassinado os nossos direitos. Não se trata de uma pauta partidária, mas humanitária. Na verdade, eles só sofisticaram as armas, mas a intenção de matar ainda é a mesma. Quem rouba a terra dos povos indígenas tem nome, tem endereço, tem gabinete… são 262 deputados que assinaram o requerimento de urgência. Falam que nós que ocupamos territórios, como que se fossemos invasores, mas nós já estávamos aqui. O Brasil começa por nós, mas não leva em consideração o povo originário que defende, não só um bem emprestado a nós, mas, sobretudo, um bem emprestado a humanidade. São assassinos. E pior: é um genocídio legislado, usando a estrutura do Congresso Nacional para matar o direito.

 

(Foto: Pablo Albarenga)

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