Publicado originalmente no portal UOL:
Nikumaroro Ilhas Phoenix, Kiribati – “Nós vamos nos acalmar e ter uma vida normal agora”, declarou George Putnam ao jornal “Oakland Tribune”. Isso significava uma casa no sul da Califórnia e o fim daquela mania de correr atrás de recordes para bater.
Após aquela aventura, sua esposa iria sossegar, garantia Putnam em 3 de julho de 1937. “Ao fim dessa viagem, ela terá sobrevoado todos os oceanos que existem para ser sobrevoados. Dar a volta ao mundo sempre foi o seu sonho da vida”, disse o homem à imprensa, enquanto aguardava o retorno dela aos Estados Unidos.
Amelia Earhart e o navegador Fred Noonan partiram da Califórnia no dia 21 de maio daquele ano.
Ela era bem famosa na época: primeira mulher a cruzar o Atlântico em um voo solo (em 1932), pioneira da aviação, acumuladora de recordes, heroína americana, ícone feminista. Uma celebridade que já tinha publicado livros, lutava por mais mulheres pilotando aeronaves, tinha uma linha de roupas, coluna na revista “Cosmopolitan” e era garota-propaganda do Lucky Strike.
Em 1937, Earhart estava pronta para o próximo passo, para o qual se dedicara dois anos. Completar a circunavegação da Terra era seu novo objetivo. A trajetória rumo ao leste teve paradas no Arizona, Louisiana e Flórida. Em seguida, o Lockheed 10E Electra voou para Porto Rico, Venezuela e Suriname. Em 6 de junho, ela partiu de Fortaleza para Natal. “Fiquei feliz em ver Fortaleza situada exatamente onde deveria estar, segundo os mapas, entre a serra e o mar. Um lugar lindo”, anotou. No dia 7, deixou a capital potiguar para cruzar o Atlântico Sul até o Senegal, quebrando o recorde de tempo para o trajeto. De Dakar, vou para Mali, Chade, Sudão, Eritreia e Etiópia.
Chegou à Ásia pelo Paquistão e seguiu para Índia, Mianmar, Tailândia, Cingapura, Malásia e Indonésia, onde fez diversas paradas. Depois vieram Austrália e Papua Nova Guiné.
Em 2 de julho, Earhart estava em direção à Ilha Howland, um território não incorporado dos Estados Unidos no Pacífico Sul. No dia seguinte, seu marido falou à imprensa, dando a declaração que vimos acima.
Com o fim da viagem à vista, agora era hora de sossegar e colher os louros. Faltava apenas uma parada no Havaí e a conclusão da epopeia, com o retorno a Oakland. Era esse o clima em que Putnam estava, na expectativa pelo retorno da esposa.
Só que Earhart e Noonan desapareceram. A aviadora nunca mais foi vista, dando início a um dos maiores mistérios das biografias dos grandes exploradores.
As buscas duraram dois meses, mas só encontraram maquiagem e um canivete, supostamente de Earhart, na Ilha Nikumaroro, em Kiribati. Em 1939, ela foi declarada morta.
O paradeiro da dupla nunca foi localizado. Mas é nessa mesma ilha, Nikumaroro, que reside uma teoria para o fim trágico.
Já se afirmou que Earhart caiu no mar ou então conseguiu voar até as Ilhas Marshall, no Pacífico Central, ou as Ilhas Marianas do Norte, no noroeste do Pacífico. Teve quem foi mais longe e disse que ela sobreviveu e foi raptada pelos japoneses ou que então passou a morar no anonimato no estado de Nova Jersey. As listas de teorias da conspiração, você sabe, são um baita coração de mãe.
Segundo o Tighar, sigla em inglês para “The International Group for Historic Aircraft Recovery”, ONG dedicada à arqueologia e à história da aviação, os dois aviadores morreram nesse remoto atol. Há um motivo crível para que seus corpos jamais tenham sido encontrados.
Nikumaroro é um filetinho de terra, mas tem fauna e flora admiráveis, com muitas espécies marinhas e aviárias. A mais impressionante, na verdade, é um invertebrado. O caranguejo-dos-coqueiros é o maior artrópode terrestre do mundo, podendo chegar a 1 metro de largura e 4 kg. Um monstro cujas pinças têm mais força do que a mordida de muitos mamíferos bem maiores.
Nikumaroro, que na época se chamava Gardner, é cercada por um recife que poderia, em uma emergência, servir de pista de pouso. Segundo o Tighar, Earhart conseguiu aterrissar ali. Mas, isolados, incomunicáveis e impossibilitados de seguir viagem, a eles só restava aguardar o destino inevitável.
Kiribati, naqueles tempos, era uma colônia britânica chamada Ilhas Gilbert. Em 1940, o administrador colonial de Gardner enviou a seus superiores um telegrama informando que restos de um esqueleto humano foram encontrados. Eram 13 ossos, que foram enviados a Fiji para análise.
Acreditava-se que os ossos eram masculinos, então poderiam ser o que sobrou do corpo de Noonan. Em todo caso, esses poucos ossinhos também acabaram perdidos.
O resto do esqueleto, onde estava? O administrador disse, no telegrama, que o local onde os ossos foram achados estava com marcas de caranguejos. O caranguejo-dos-coqueiros é onívoro, come frutas, pássaros e roedores (além, claro, de cocos). A espécie tem outro nome popular, que diz tudo: caranguejo-ladrão. O bichão pega o que vai comer, e leva embora.
Mas ele se alimentaria de carne?
Por mais incrível que seja, o caranguejo não é muito estudado pela ciência. Na década passada, por exemplo, não havia informações suficientes para determinar o seu estado de conservação (hoje sabemos: é vulnerável).
O Tighar conduziu diversos experimentos para ver se os caranguejos se interessavam por ossos e os arrastavam para suas tocas. Em um deles, largaram uma carcaça de porco para ver o que rolava. Resultado: caranguejos-ladrões, acompanhados por uma outra espécie, menor, de caranguejo, consumiram o porco quase por completo em duas semanas.
Eles concluíram, portanto, que é bem possível que Earhart tenha morrido na ilha e que os artrópodes gigantes devoraram seu corpo e levaram a maioria dos ossos para a toca. A conclusão casa bem com uma análise forense realizada em 2018, que fez novas medições dos ossos levados a Fiji em 1940.
O estudo concluiu que os ossos eram femininos e que, com base nas roupas e fotografias de Earhart, seriam dela: 99% de certeza. Só não conseguiram cravar 100% porque, como a gente viu, os ossos desapareceram, então uma análise mais profunda é bem difícil de acontecer.
Esse 1% de dúvida é um mundo infinito para negacionistas e teóricos de plantão. O mistério, mesmo que possivelmente resolvido, permanecerá no ar.
Na imagem principal, caranguejo-dos-coqueiros, o maior artrópode terrestre do mundo. (Foto: Rainer von Brandis/Getty Images/iStockphoto)