Confira o artigo do senador Beto Faro (PT-SP) sobre o projeto de lei do Marco Temporal das terras indígenas, proposta que define a demarcação apenas de terras que já eram ocupadas por povos indígenas até a promulgação da Constituição Federal de 1988, que foi aprovado no último mês de maio pela Câmara dos Deputados e que começa a ser discutido essa semana no Senado Federal. O senador paraense é o responsável pela audiência pública na próxima quarta-feira (23), na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), para buscar um meio-termo sobre o tema.
Marco temporal da expropriação
Por Beto Faro
Após aprovação na Câmara dos Deputados em maio deste ano, o Senado pautou a finalização do processo legislativo de uma proposição altamente polêmica pelo seu potencial de impactos na integridade territorial, na cultura, nos direitos e nas condições de reprodução social das populações indígenas do Brasil.
Trata-se do projeto de lei do Marco Temporal da Ocupação, pelo qual, em afronta grosseira à Constituição, uma comunidade indígena só poderia reivindicar a demarcação de área com a sua presença física na mesma em 5 de outubro de 1988. O projeto acrescenta outras inovações temerárias.
Para entender a proposição, é preciso contextualizá-la. Pelo receio de 2022 vir a se constituir no último ano do “passa-boiada”, lideranças mais inflexíveis da bancada ruralista no Congresso exerceram pressões políticas, no limite, para viabilizar, antes da vitória de Lula, um conjunto de medidas legislativas consideradas essenciais para o avanço, sem óbices regulatórios, da grande exploração agropecuária. Organizações da sociedade civil que, com igual tenacidade, se opuseram e lutaram contra as medidas, as definiram como “pacote da destruição” pelos danos socioambientais a elas associados.
Ao fim e ao cabo, pretenderam e pretendem, com o pacote, facilidade de acesso às terras públicas, redução de custos e desempecilho ambiental para a atividade agrícola. Apesar da ofensiva sem tréguas pela aprovação das medidas, muitas delas não prosperaram graças, em especial, às lutas das organizações sociais; às reações de setores mais prudentes do próprio agronegócio e de parte da mídia; e aos temores de perdas no mercado internacional.
Integram o “pacote”, entre outras medidas, as frequentes tentativas de flexibilização na legislação da regularização fundiária, por vezes, para “chancelar” a grilagem; permissividade no registro e uso dos agrotóxicos; desobrigação do licenciamento ambiental para a agricultura; desconstituição e transferência aos grandes proprietários de terras institucionalmente protegidas. Esse último ponto inclui o marco temporal.
Na verdade, a definição desse marco restritivo para as demarcações de Terra Indígenas (TIs) é “apenas” o carro-chefe do projeto. Destaco o poder que a iniciativa parlamentar dá aos interessados na demarcação, incluindo o direito de contestarem o processo demarcatório em qualquer fase, sem regras, prazos ou qualquer outro balizamento para tal. Obviamente, esse dispositivo teria efeito paralisante na demarcação das TIs. E, ainda, a abertura das terra indígenas para a exploração econômica por terceiros.
As violações à Constituição são percebidas já na identificação do projeto que supostamente pretende regulamentar o art. 231 da Constituição. Na realidade, o PL simplesmente altera esse dispositivo da Constituição que em nenhum momento prevê qualquer recorte temporal na ocupação física territorial por uma comunidade indígena como condição para a demarcação da terra.
A despeito das controvérsias de mérito, a eventual aprovação do PL poderia ser interpretada como uma provocação ao Supremo Tribunal Federal, que atualmente conduz processo de deliberação sobre o assunto.
Ainda no plano político, pelos dispositivos que atacam de forma tão ostensiva os direitos dos povos indígenas, o projeto inviabiliza a convergência política mínima necessária para uma legislação da espécie. Parece provável que a insistência no prosseguimento da matéria sem maiores debates que favoreçam a constituição dessa base mínima de consenso político resulte em veto presidencial e na judicialização da eventual legislação.
Claro que por trás da iniciativa desses segmentos Bolsonaro-ruralistas está a pretensão de desmantelamento dos territórios indígenas para disponibilizar mais terra ao latifúndio mediante o argumento grotesco de que os indígenas detêm muita terra. Ora, os 152 mil grandes proprietários rurais do Brasil acumulam 471 milhões de hectares ou 55.4% da área territorial do país, enquanto 1.7 milhão de indígenas ocupam 118 milhões de hectares. Ou seja, 152 mil grandes proprietários possuem 353 milhões hectares a mais que a área indígena total do Brasil.
(Foto: Gustavo Bezerra)