Atentado na Rússia dá margem a um show de teorias da conspiração

Henrique Acker (correspondente internacional)   – Menos de 72 horas depois do atentado terrorista que vitimou mais de 180 pessoas no Crocus City Hall, na Rússia, comentaristas e meios de comunicação ocidentais já deram a sentença. Para a maioria, o responsável pelo ocorrido é o próprio Vladimir Putin, que não teria dado a devida atenção ao alerta divulgado duas semanas antes pela Embaixada dos EUA em Moscou.

Na verdade, o comunicado da Embaixada dos EUA foi direcionado aos cidadãos estadunidenses em Moscou. Ele foi emitido horas depois do Serviço Federal de Segurança da Rússia ter informado que neutralizara uma célula terrorista do Estado Islâmico que estaria preparando um ataque a sinagogas na capital russa.

De acordo com o texto publicado em 7 de março pela representação diplomática dos EUA, “extremistas têm planos iminentes para atacar grandes concentrações em Moscovo, incluindo concertos, e os cidadãos americanos são aconselhados a evitar ajuntamentos nas próximas 48 horas”.

 

Maniqueísmo primário

Mas há quem vá mais longe, levantando a tese de que o atentado teria sido forjado pelo próprio Putin e o serviço secreto russo, com o objetivo de incriminar o governo da Ucrânia e justificar uma possível ofensiva militar mais sangrenta das forças russas no front da guerra.

A teoria da conspiração sobe o tom quando muitos desses “tudólogos”, alguns diplomados em política internacional e outros apenas palpiteiros anti-russos e pró-Otan, acenam com meras desconfianças.

A base para essas análises seria a falta de transparência e as práticas antidemocráticas do governo de Vladimir Putin. Um maniqueísmo primário, que divide o mundo em dois lados: o dos “maus”, que mentem para impor seu objetivo devastador para a humanidade, e o dos “bons”, sempre dispostos a falar a verdade, em defesa da democracia e da liberdade.

 

Distorções

Outro ramo da “chutologia” da propaganda ocidental distorce as palavras do presidente do Tajiquistão (ex-república soviética), Emomali Rakhmon, sobre a nacionalidade dos quatro terroristas capturados. O serviço secreto russo afirma que são tajiques e que só um fala russo.

De acordo com informação publicada pela Agência de Notícias Lusa (Portugal), Rakhmon afirmou a Vladimir Putin que “os terroristas não têm nacionalidade”. No entanto, alguns torcedores de plantão interpretaram que o Presidente do Tajiquistão estaria desmentindo Putin e que os quatro suspeitos não seriam tajiques.

Muito pouca novidade é possível obter na imprensa russa, submetida a um processo permanente de vigilância e pressão por parte do regime. Jornais e portais de notícias reproduzem o que as autoridades informam, sem acrescentar muito ao que já se sabe.

 

O que se sabe

Os detidos foram conduzidos a um tribunal, que decretou prisão preventiva de todos até 22 de maio. São eles: Dalerdzhon Mirzoyev, Saidakrami Rachabalizoda, Shamsidin Fariduni e Muhammadsober Faizov, os quatro de nacionalidade tadjique.

Os prisioneiros apareceram com diversos hematomas nos rostos e um deles foi levado em cadeira de rodas ao tribunal. Certamente as marcas visíveis são resultado de sessões de interrogatório a que foram submetidos pela polícia russa. Métodos condenáveis, mas conhecidos de todo cidadão que caia nas mãos da polícia em qualquer parte do mundo.

O intrigante é que nenhum dos papagaios de plantão da mídia ocidental fez ressalvas ao fato de que o governo dos EUA afirmou em comunicado que a Ucrânia nada teve a ver com o caso, antes mesmo das autoridades ucranianas se pronunciarem.

De acordo com o governo russo, os quatro suspeitos teriam sido detidos a caminho da fronteira com a Ucrânia. Um dos interrogados teria confessado que receberia dinheiro pela “missão”, sem especificar quem seriam os financiadores e mandantes.

 

E o Estado Islâmico com isso?

Num artigo publicado no Komsomolskaya Pravda, em que recorda o apoio do governo estadunidense à formação de grupos jihadistas, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo desafiou os EUA a “repensarem” a sua narrativa sobre o atentado próximo de Moscou, que já redundou em mais de 180 mortos.

No texto, intitulado “Biden não ama o mundo, mas o ISIS”, Maria Zakharova acusou os EUA de tentarem encobrir “o envolvimento dos atuais habitantes da Casa Branca no patrocínio do terrorismo ucraniano”.

A única pista que pode ligar os autores do atentado ao Estado Islâmico (ou ISIS) é o fato da Rússia ter se aliado ao governo Assad para combater os jihadistas na Síria.

Recentemente Moscou estreitou relações e enviou comandos militares em apoio aos governos do chamado Sahel, parte da África colonizada pela França. Um dos motivos que explica as recentes declarações de Emmanuel Macron sobre a necessidade do envio de tropas de países europeus para combater os russos na Ucrânia.

O Estado Islâmico está ativo no Níger, no norte do Mali, em Burkina Faso. O Estado Islâmico da Província da África Ocidental (ISWAP), originalmente um derivado da organização nigeriana Boko Haram, está ativo principalmente na Região do Lago Chade.

 

Mais informação, menos propaganda

Ainda é prematuro tirar qualquer conclusão sobre os motivos e os responsáveis diretos e indiretos pelo atentado no Crocus City Hall. Não há dados consistentes que confirmem ou desmintam as teses até aqui levantadas.

É provável que o governo Putin use o atentado para justificar novas ofensivas no campo militar na Ucrânia. Isso deve contribuir ainda mais para acirrar as tensões na Europa e o avanço da corrida armamentista mundial.

As versões fantasiosas, eivadas de maniqueísmo e repetidas por comentaristas que mais parecem membros de torcidas organizadas, só contribuem para confundir a opinião pública.

Seria de bom tom que os meios de comunicação do Ocidente, em sua maioria concessões públicas, convidassem estudiosos menos tendenciosos, dedicados a analisar fatos e a explicar possíveis relações de causa e efeito entre os acontecimentos.

Numa conjuntura de ânimos acirrados, em que é preciso serenidade para entender os fatos, a propaganda, além de nada esclarecer, é a pior resposta.  (Foto: REUTERS – Maxim Shemetov)

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

 

 

Fontes de consulta:

https://pt.euronews.com/2024/03/08/embaixada-dos-eua-em-moscovo-alerta-para-ataques-iminentes-na-capital-russa

https://www.sapo.pt/noticias/atualidade/tajiquistao-avisa-russia-que-terroristas-nao-_66002926fb26ca4a98586664

https://cnnportugal.iol.pt/atentado-em-moscovo/russia/autoridades-russas-agrediram-suspeitos-do-atentado-resposta-oficial-deixo-esta-questao-sem-resposta/20240325/66015621d34e8d13c9b93418

https://www.kp.ru/daily/27583.5/4909030/

https://cnnportugal.iol.pt/videos/carlos-branco-ha-uma-serie-de-indicios-para-o-envolvimento-da-ucrania-no-atentado-de-moscovo/65ff55c20cf2ee3456733445

https://www.dn.pt/2162986652/o-sahel-e-a-africa-ocidental-os-perigos-e-as-ameacas-na-proximidade-da-europa-e-de-portugal/

https://cnnportugal.iol.pt/eua/ue/turbulencia-no-niger-eua-e-europa-aos-papeis-parcerias-em-banho-maria-e-a-russia-e-o-irao-a-rondar-a-carcaca-o-que-se-passa-no-sahel/20240323/65fd8bebd34e8d13c9b91fda

 

 

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