Três plataformas de apostas, que possuem 18 milhões de usuários, obtiveram permissão de um juiz de plantão para iniciar suas atividades; o Judiciário afirma não haver evidências suficientes para considerar a concentração de processos.
Em uma reportagem veiculada no Estadão, o jornalista Vinícius Valfré relata que plataformas de apostas, impedidas pelo Ministério da Fazenda devido a investigações policiais, estão utilizando táticas jurídicas para obter autorização para funcionar sem cumprir as exigências impostas pelo governo.
As estratégias envolvem direcionar esforços a um juiz federal em Brasília que possui um histórico de aceitar solicitações das apostas. Além disso, as empresas recorrem ao Judiciário para converter em permanentes as licenças temporárias solicitadas em processos administrativos que já foram concluídos.
Em comunicado, as companhias declaram que o governo não deve estabelecer seus próprios critérios para a declaração de inidoneidade das apostas. Por sua vez, a Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) aponta que a tramitação dos processos obedece às normas do regimento interno, mas não possui dados suficientes para detalhar a distribuição de casos entre os juízes.
O plano identificado pelo Estadão, graãs ao trabalho investigativo do repórter, foi reconhecido pela Advocacia Geral da União (AGU), que observa um “excesso no exercício do direito de processar” por parte dos apostadores e menciona “irregularidades” nas sentenças emitidas durante o regime de plantão do Judiciário – cuja finalidade, em princípio, é atender apenas casos que demandam urgência.
Os mecanismos permitem que casas de apostas adiem ou evitem o pagamento direto ao governo dos R$ 30 milhões de emissão exigidos de cada empresa oficialmente licenciada. Esse desvio também as isenta da avaliação de certidões, histórico e certificações realizadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), vinculada ao Ministério da Fazenda.
Ameaça aos apostadores
Em comunicado, a secretaria declarou que as companhias sem autorização oficial não atenderam a todas as normas legais e regulamentares estabelecidas para assegurar a segurança na operação comercial dessa atividade. Aferir autorização a essas empresas por meio de outros meios, segundo a secretaria, “constitui uma ameaça à proteção dos apostadores e da economia popular“.
A investigação examinou uma vasta quantidade de documentos jurídicos, pedidos da Advocacia Geral da União, procedimentos administrativos do Ministério da Fazenda e ações policiais em curso, identificando esse tipo de prática em três plataformas de apostas com um total de 18 milhões de usuários: VaideBet, BetPix365 e ObaBet.
Os portais são parte do conglomerado BPX, que conta com José André da Rocha Neto e Aislla Sabrina Rocha entre seus parceiros. Ambos foram investigados na Operação Integration pela Polícia Civil de Pernambuco, resultando em uma declaração de incapacidade e um subsequente impedimento pelo Ministério da Fazenda. A principal plataforma do grupo é a Vaidebet, associada ao cantor Gusttavo Lima.
O plano das apostas do BPX envolveu levar um processo judicial ao juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Cível da Justiça Federal do Distrito Federal, que é responsável pela autorização de pelo menos 13 dos 18 sites que tinham sido bloqueados pelo Ministério da Fazenda.
Catta Preta tomou duas decisões benéficas ao BPX, em uma noite de sexta-feira e na manhã de um domingo, enquanto o Judiciário estava em regime de plantão, mesmo com o caso seguindo seu curso normal com um “juiz natural”. Ele não se manifestou quando foi contatado.
Abuso do direito de litigar
A partir de outubro de 2024, os pedidos da BPX já haviam sido analisados por quatro juízes federais de primeira instância em três processos diferentes: Renato Coelho Borelli, Leonardo Tavares Saraiva, Sergio Wolney de Oliveira Batista Guedes e João Moreira Pessoa de Azambuja. Todos rejeitaram os requerimentos, pois não encontraram urgência ou fundamentos suficientes para conceder liminares. Para a AGU, as diversas ações com solicitações repetidas configuram um “abuso do direito de litigar“.
No dia 24 de janeiro, a BPX protocolou uma nova solicitação para tentar liberar o bloqueio, que foi analisada por duas Varas sem obter uma decisão favorável. Diante disso, os advogados do grupo recorreram ao plantão do Judiciário na noite de 7 de março, às 19h27. O juiz de plantão, Catta Preta, aceitou o pedido da empresa às 22h19.
Conforme a análise realizada pela AGU, essa é uma ação intencional das companhias de apostas. Nos recursos apresentados, o órgão ressalta que a BPX tentou influenciar a análise de Catta Preta devido ao seu histórico positivo em relação às apostas em processos de outras empresas. “Com base na decisão da 4ª Vara que favoreceu as empresas, várias delas tentaram encaminhar suas solicitações para aquele tribunal”, enfatizou um parecer.
No dia subsequente à deliberação do plantonista, às 14h51 de sábado, 8 de março, a empresa protocolou embargos de declaração (um recurso utilizado para esclarecer ou retificar uma decisão) solicitando que mais oito questões fossem analisadas. Dentre essas solicitações, estava o pedido para obter o domínio bet.br, que designa os sites reconhecidos pelo governo, além de permitir o depósito dos R$ 30 milhões não à União, mas em juízo. Às 6h52 de domingo, 9 de março, os pedidos foram aceitos por Catta Preta.
Decisões inválidas
A AGU apontou que é surpreendente que essa decisão tenha sido tomada em regime de plantão. Nos documentos protocolados no Judiciário, a advocacia da União argumenta que as decisões são inválidas devido a inconformidades do juiz. Uma dessas inconformidades é a emissão de resolução em plantão sobre um caso que já havia sido analisado por outros magistrados.
“Uma tutela de urgência no âmbito civil pode ser analisada em regime de plantão, desde que a espera possa ‘gerar risco de danos significativos ou de difícil reparação‘. Qual seria a urgência que tornaria impossível aguardar mais um dia – considerando que a decisão dos embargos foi tomada em um domingo de manhã – para que o pedido fosse avaliado pelo juiz competente?”, questionou a AGU.
A escolha de Catta Preta apresenta outro aspecto que especialistas do governo consideram um sério problema. Ela menciona a obrigação de cumprir as demandas de uma decisão anterior, emitida pelo desembargador Pablo Zuniga, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no ano passado. No entanto, essa diretriz anterior se limitava a uma fase do processo administrativo na Fazenda que já perdeu a validade.
A decisão anterior mencionada refutou a ideia de que os sócios da BPX, proprietária da Vaidebet, não atendiam aos requisitos de idoneidade apenas por estarem sob investigação em Pernambuco.
A decisão do desembargador, datada de 13 de novembro, estava relacionada ao pedido da empresa para operar durante o denominado “período de adequação”, que foi válido até 31 de dezembro de 2024. A partir de 1º de janeiro, apenas as casas de apostas que atenderem a todos os critérios necessários para o “período de autorização” estão autorizadas a operar no Brasil.
Requisitos variados
O Ministério da Fazenda considera esses dois momentos como totalmente diferentes, impondo requisitos variados para as empresas em cada fase.
A partir de janeiro, para obter a autorização, as companhias terão que apresentar aproximadamente 100 documentos, incluindo certidões de caráter trabalhista e fiscal, além de evidenciar, entre outras exigências, as certificações de conformidade relacionadas aos jogos disponibilizados aos apostadores.
A administração federal não contestou a decisão de novembro, acreditando que ela se tornou sem efeito com a chegada do novo ano. Contudo, em janeiro, a defesa do BPX retornou ao caso, argumentando que houve desrespeito à determinação do desembargador. Também foi solicitado que um “pequeno erro material“ na decisão fosse corrigido. O juiz de segunda instância atendeu a esse pedido.
“O desembargador observou um equívoco no veredito, uma vez que foi mencionada a Portaria 827/2024, quando na verdade deveria ser a Portaria 2.104/2024.“.
Um decreto refere-se às condições para operar durante o período de adaptação (até 31 de dezembro). O outro apresenta a relação de empresas que estão autorizadas a iniciar o período regulatório (a partir de 1º de janeiro). Segundo a AGU, isso não é um erro material, mas sim uma confusão intencional realizada pela BPX. Assim, a AGU acredita que é equivocado classificar a discrepância como um simples “erro material”. (Foto: Reprodução)
Com informação do portal Estadão