A coisa mais linda que eu não vi passar.

Glauco Alexander Lima – Nos dias de hoje, talvez o poeta Vinicius nem tivesse criado Garota de Ipanema, uma das mais famosas músicas já feitas no mundo.

Ela é considerada a segunda canção mais executada da história da música mundial, só perde para Yesterday. De cabeça baixa, olhando para o celular, provavelmente não veria aquela coisa mais linda, mais cheia de graça, passando num doce balanço a caminho do mar.

Quando levantasse a cabeça, depois de participar de uma treta no X, ou compartilhar uns vídeos no WhatsApp, a moça do corpo dourado pelo sol de Ipanema já tivesse sumido na areia, com seu balanço que era mais que um poema. E nós jamais ouviríamos essa obra de arte genial com letra do Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim.

Estamos cada vez mais de cabeça baixa, com os olhos grudados na telinha do smartphone. Existem vários estudos sobre essa cabeça baixa. Mas todos concordam em seus levantamentos, que a quantidade de horas diárias que nós brasileiros, em média, temos gastado no celular, só cresce nos últimos anos: o país passou das 4,1 horas diárias, em 2019, para 5,2 horas diárias, em 2020, até chegar às 5,4 horas diárias em 2021.

Hoje já se fala em 7 ou 8 horas por dia entre aplicativos, games, portais noticiosos e outras atrações, interessantes ou não. Estamos cada vez mais baixando a cabeça para a tecnologia e deixando de ver poesia banal ao captar as mensagens que cenas singelas ou mesmo de imagens menos bonitas, mas não menos comoventes, nos transmitem. Imagens que vão compondo nosso olhar, nossa sensibilidade, nossa humanidade, nossa sabedoria simples de perceber, sem perceber que estamos percebendo.

Cenas como o sorriso de um banguela, o olhar de um pedinte ou uma folha seca rodopiando ao vento. A garota de Ipanema, a idosa do Capão Redondo, o garoto da Terra Firme. O brilho de um cabelo grisalho ao sol, a careta da beata, o pingo da chuva que ontem caiu, mas ainda está a brilhar na folha, ainda está a cantar.

Pode ser que o poeta, se vivesse hoje, fizesse parte do grupo de brasileiros que não usam smartphone, mas essa probabilidade é pequena. O Brasil tem, atualmente, mais de um desses incríveis aparelhos por habitante. São algo em torno de 242 milhões de celulares inteligentes em uso no país, que tem mais de 214 milhões de habitantes. Quando se olha para o cenário global, dentre 193 países, atualmente o Brasil é o 5º país com a maior quantidade de usuários de smartphones no ranking mundial.

Estamos vendo a vida numa espécie de voyeurismo digital. Esse voyeurismo não está relacionado apenas com a prática que consiste num indivíduo obter prazer sexual através da observação de pessoas transando. Estamos tendo sensações com observações de todos os tipos de evento dos outros. Sejam relevantes ou irrelevantes, fúteis ou valiosos, toscos ou geniais. Todos geram um turbilhão de informação, que nos deixa desinformados ou com os radares do olhar desregulados e sem poder de captura.

Um certo Chico, um dos maiores gênios artísticos e políticos do mundo, escreveu numa canção: …lá fora, amor, uma rosa nasceu. Todo mundo sambou, uma estrela caiu. Eu bem que mostrei,sorrindo, pela janela, ói que lindo, mas só Carolina não viu…”

Hoje não seria só Carolina que teria perdido tantas imagens lindas como uma estrela caindo. A maioria, de cabeça baixa, não teria visto nada. Ou veria depois, na postagem do vídeo no Facebook ou no TikTok. Mas nunca será a mesma emoção. Mesmo quem só viu no celular e for perguntar pra quem viu acontecer ao vivo, vai ter a resposta da canção do Buarque: “agora não sei como explicar… “

O nome smartphone, expressão em inglês, significa,em português, telefone inteligente. Mas esse domínio tecnológico tira a inteligência que vem da cabeça erguida. Aquela que percebe, pelo canto do olho, o boteco do canto da rua. Com seus aposentados exibindo sorrisos dourados de nostalgia e uma certa melancolia indescritível.

Estamos,sem dúvida alguma, vivendo no futuro. Mesmo quem nasceu no final do século 20, vê mais transformações e inovações do que quem nasceu em 1910 e morreu velhinho no ano 2000.

Esse futuro tem muito fascínio, sim. Podemos fazer e ter praticamente tudo no smartphone, de pizzas a PIX. De teorias da conspiração a aplicativos para checar o saldo bancário. As pessoas vivem no WhatsApp e não moram mais em si. O aplicativo Whatsapp é a rede pessoal e social mais utilizada no Brasil. Entre os usuários de internet com idades entre 16 e 64 anos, mais de 94% o utilizam.

O futuro é prático, agilizado, produtivo, funcional, inclusivo, mas definitivamente não é bonito. Ou não nos deixa ver o bonito. Se a televisão deixou os Titãs burros demais, o smartphone nos deixa brutos demais.

Passamos batidos sem notar a “besteira” bonita. A bobagem que marca. É uma força estranha, que ao contrário da cantada por Caetano Veloso, não nos deixa ver o menino correndo, a mulher preparando outra pessoa. Esse tempo não para pra gente olhar para aquela barriga e perceber que a vida é amiga da arte.

E voltando ao poetinha da garota de Ipanema, que lá dos anos 1960 vislumbrou pra gente aqui, no futuro: “ah, se vocês soubessem que quando ela passa ( a vida), o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo por causa do amor…”

 

(*) GLAUCO ALEXANDER LIMA é publicitário e trabalha desde 1984 com comunicação social e gestão de imagem

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