Por Henrique Acker – Os números da eleição legislativa de 18 de maio expressam o retrato da crise da democracia e a baixa representatividade dos partidos políticos em Portugal. Apesar de mais votada, a coligação de direita Aliança Democrática (PSD-CDS) não obteve maioria. O segundo lugar pode ficar com o Chega, de extrema-direita, ou o Partido Socialista, que perdeu 20 deputados.
No entanto, limitar qualquer análise desta eleição aos números é correr o risco de tirar conclusões superficiais. O avanço da direita, que terá mais de dois terços da Assembléia da República, pode levar a mudanças da Constituição, ameaçando conquistas sociais da Revolução de 25 de abril.
Desde 1974, o Partido Social Democrata (Centro-Direita) e o Partido Socialista (Centro-Esquerda) revezam-se no governo de Portugal. São décadas de governos de administração de conflitos, que tiveram como consequência, via de regra, poucos avanços para os portugueses.
Enfraquecimento da democracia
A partir da década de 80, com a adoção das teses neoliberais – redução de investimentos públicos e enxugamento da presença do Estado na economia, corte de benefícios e direitos sociais, privatizações – Ronald Reagan e Margareth Thatcher anunciaram um novo tempo no mundo.
A partir dali, fortalecido com a queda do regime da URSS, o capitalismo passou a espremer ainda mais os trabalhadores e os mais pobres. A democracia e o Estado social, antes conquistas dos povos, passaram a ser justamente os instrumentos que o sistema encontrou para legitimar os interesses de uma minoria, gerenciando o Estado exclusivamente a favor das grandes corporações privadas.
Dali em diante, os de baixo passaram a sofrer cada vez mais perdas, com salários congelados ou reajustados abaixo do custo de vida, reformas trabalhistas e previdenciárias que lhes obrigaram a trabalhar mais e receber menos.
Os serviços públicos, quando não foram entregues à ganância de grupos privados, pioraram e passaram a contar com menos verbas e investimentos dos governos, como nos casos da Saúde e da Educação.
Raspa do tacho
A pedra de toque da crise social que fragilizou a democracia foi a precarização do trabalho no mundo inteiro. Foi justamente o ideário neoliberal que rebaixou salários e as condições de trabalho, atraindo cada vez mais levas de trabalhadores que fugiam da extrema pobreza em seus países para a Europa e os EUA.
A juventude dos países mais avançados que consegue estudar e se formar não aceita salários baixos e trabalhar em tarefas precárias. Os jovens saem de seus países ou trabalham pela internet, como nômades digitais.
As vagas de trabalho precário acabam sendo a tábua de salvação para milhões de trabalhadores africanos, asiáticos e latino-americanos, que vivem em condições ainda mais precárias em seus países de origem.
Grande parte dessas vagas em áreas menos valorizadas também acaba sendo preenchida por trabalhadores de nível superior do chamado “terceiro mundo”.
Extrema-direita avança
A precarização do trabalho com remuneração baixa pressiona salários e afeta a qualidade de vida dos europeus. Como a disputa eleitoral não vem trazendo praticamente nenhuma consequência em forma de melhoria, o trabalhador europeu passa a identificar no imigrante um concorrente que “rouba” seu trabalho, vive em seu país e ainda piora sua vida.
No caso de Portugal, país com um salário-mínimo dos mais baixos da Europa, esse quadro é nítido. A insatisfação, que deveria ser com os patrões, passa a ser com os governantes, que teriam “facilitado” a imigração em massa. Diante da falta de quem se sujeite à precariedade do trabalho e aos baixos salários, as empresas se beneficiam da mão-de-obra barata dos imigrantes.
É nesse ambiente que crescem os partidos de extrema-direita. O racismo e a xenofobia para com os estrangeiros acabam sendo formas como o neofascismo dá vazão à sua política na Europa do século XXI. E o resultado aparece nas urnas, inclusive nas regiões mais pobres. Acrescente-se a isso a falta de renovação das esquerdas, a partir da queda da URSS.
Crise se aprofunda
Nos últimos anos, a qualidade de vida da maioria do povo português vem caindo. Um quarto dos trabalhadores – incluindo o grosso dos imigrantes – recebe salário-mínimo (870 euros brutos) e muitos são obrigados a complementar a renda em bicos. Sessenta por cento dos aposentados portugueses recebem cerca de 510 euros.
Os imigrantes estão concentrados em três setores importantes para a economia portuguesa: construção civil, agricultura, bares/restaurantes/hotelaria. Juntos, eles representaram quase 20% da economia do país em 2024. Sem contar o setor de serviços por plataformas da internet, como entregadores e motoristas de aplicativos.
Há uma crise na habitação, com os preços dos aluguéis nas alturas e crédito caro para a compra de casa própria. O valor do metro quadrado construído em Lisboa supera 5 mil euros. Hospitais e escolas públicas não dão conta da demanda, sobretudo nas cidades maiores.
Cenário favorável ao Chega
Ora, essa insatisfação que não aponta o dedo aos patrões só poderia explodir nas urnas. Que voto pode representar esse protesto? A demagogia da extrema-direita, por que tanto o PSD quanto o PS no governo pouco fizeram para aliviar a vida dos debaixo.
A esquerda, que teve papel decisivo nas conquistas do 25 de abril, perde cada vez mais espaço no cenário político. Uns por se manterem apegados ao mesmo discurso de sempre, como o PCP, outros por não trazerem respostas aos novos problemas, como no caso do Bloco de Esquerda.
Em seu discurso na noite da apuração da eleição, André Ventura (líder do Chega) confessou alguns de seus objetivos: “O Chega matou o partido de Álvaro Cunhal, o Chega varreu do mapa o Bloco de Esquerda”.
Com o resultado da eleição, pela primeira vez desde 1974, os partidos de direita alcançaram dois terços dos votos necessários na Assembléia da República para alterar a Constituição portuguesa.
Alguns analistas apostam numa aproximação do PS com o PSD, para que o próximo governo tenha alguma estabilidade. Assim, o Chega será visto pelo eleitor como o único partido que propõe a mudança no cenário político português. É tudo que a extrema-direita quer para abrir caminho a uma vitória futura.
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Nota: O Partido Socialista perdeu cerca de 360 mil votos nesta eleição em relação a 2024. A Aliança Democrática (PSD+CDS) obteve mais 100 mil votos que em 2024. O Chega conquistou mais 170 mil votos que na eleição de 2024.
Por Henrique Acker (correspondente internacional)