Em Portugal e no Brasil, o que herdamos dos militares de Abril

Por Henrique Acker   –Enquanto escrevo essas linhas, as TVs portuguesas mostram os desfiles que lotam as ruas no Dia da Liberdade, no Porto e em Lisboa. Em Portugal, é feriado, dia de lembrar a Revolução dos Cravos.

Em 25 de abril de 1974, os militares portugueses, através do Movimento das Forças Armadas (MFA), decidiram pôr fim ao fascismo, à guerra colonial na África e restabelecer a democracia. Logo o povo ganhou as ruas para apoiar o MFA e construir um novo país.

 

Ditadura e democracia

No Brasil de 1974, em plena ditadura militar, os golpistas do primeiro de abril de 64 administravam o país a ferro e fogo. Imperava a censura. Milhares de democratas e lutadores do povo sofriam tortura nos porões da ditadura, enquanto outros eram obrigados a viver fora do país.

A herança da ditadura brasileira foi o avanço da miséria e um país ainda mais desigual. Impôs-se a mordaça sobre os sindicatos, o arrocho dos salários, um endividamento externo jamais visto, a concentração ainda maior da terra, o desmonte do ensino público, uma polícia com licença para matar.

Em Portugal, o povo fazia da liberdade conquistada em abril a licença para tomar o destino em suas mãos, através do poder popular. Onde não havia espaços para as crianças, as mães ocupavam para fundar creches e praças. Onde se impunha o arrocho salarial, os trabalhadores paravam as fábricas. Onde a terra era para poucos, os camponeses passaram a plantar e colher para todos. Onde não havia hospitais e postos de saúde, médicos e enfermeiros ousavam ergue-los.

Os patrões e latifundiários que resistiam aos protestos dos trabalhadores e camponeses eram desmoralizados. Alguns fugiam do país. Já não tinham mais a polícia salazarista e a Pide para reprimir as contestações. Ao contrário, chamados a mediar conflitos, os militares do MFA, via de regra, se colocavam ao lado do povo.

 

Ontem e hoje

Em 1974, a colônia portuguesa ainda era grande no Brasil, enquanto um punhado de brasileiros vivia em Portugal. Hoje, é justamente o contrário. Pelo menos 400 mil brasileiros vivem em Portugal (fala-se em 600 mil). Vêm em busca de melhor qualidade de vida.

Os que conseguem se estabelecer, com trabalho e documentação, apesar de ser mão-de-obra absorvida pelos setores que pagam menos, usufruem da qualidade de vida no país. Só não sabem que tudo que elogiam foi conquista da Revolução de 25 de abril de 1974.

Seus filhos estudam em escolas públicas em tempo integral. Quando precisam de atendimento médico, podem recorrer às unidades de saúde pública, realizar consultas, exames e obter medicamentos coparticipados pelo Estado português. O salário-mínimo é baixo, mas não se compara ao miserê pago à maioria dos trabalhadores no Brasil.

 

Passado que nos une

No Brasil, a ditadura militar encerrada em 1985 criou um fosso que persiste até hoje entre as Forças Armadas e o povo. A anistia “possível” livrou os torturadores dos tribunais e das cadeias. O governo que se ergueu com a volta da democracia foi fruto de um acordo que preservou os interesses das classes dominantes. Elas moldaram o Estado à sua imagem e semelhança.

Em Portugal, os heróis da democracia são os capitães de abril, comandantes das tropas militares que tomaram Lisboa e derrubaram o regime fascista, então presidido por Marcello Caetano, o mesmo que a ditadura brasileira acolheu depois que saiu de Portugal.

Dos dois lados do Atlântico, ainda há muitos problemas a resolver. Muitos deles têm a ver com o passado que une Brasil e Portugal, com as marcas que a metrópole e a colônia herdaram da História dos dois países.

 

Ruptura e conchavo

Mas é sintomático que a democracia portuguesa – fruto de uma Revolução que extirpou o fascismo – tenha propiciado tantas conquistas ao povo português. E ainda assim, os portugueses ainda lutam para retomar, garantir e aprofundar suas conquistas.

Ao mesmo tempo que, até hoje, a frágil democracia brasileira – nascida de um acordo de bastidores entre as elites – preservou a desigualdade social e econômica, e pouco garantiu à maioria dos brasileiros, apesar das conquistas democráticas.

Seja como for, qualquer avanço que beneficie as maiorias só pode ser fruto do aprofundamento da democracia e da participação popular, jamais da sua negação.

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

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