Brasileiro está mudando sua relação com o trabalho

Aumento nos pedidos de demissão; escassez de trabalhadores em áreas que requerem esforço físico e turnos extensosabrangendo desde a construção até o setor de alimentos; um crescente desinteresse pelo trabalho formal e críticas nas mídias sociais a jornadas excessivas, horários rígidos, supervisores problemáticos e escalas 6×1, que oferecem apenas uma folga por semana; além do crescimento significativo de microempreendedores individuais (MEIs).

De acordo com especialistas, esses indicativos sugerem que a forma como os brasileiros encaram o trabalho está se transformando. Um dado que ilustra essa mudança é que um número recorde de trabalhadores com contratos formais no Brasil optou por se desligar de suas funções.

Uma pesquisa conduzida pelo economista Bruno Imaizumi, da LCA 4intelligence, a qual O GLOBO obteve acesso exclusivo, revelou, utilizando informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que 37,9% das demissões ocorridas em janeiro deste ano foram solicitadas pelos próprios empregados.

Em 2020, esse índice era de 24% e tem aumentado desde então. Nos anos de 2013 e 2014, quando o Brasil registrou níveis de desemprego igualmente baixos aos que temos hoje, essa proporção variou entre 29% e 30%.

A pesquisa da LCA delineia o perfil desses profissionais: predominam os jovens, mulheres e trabalhadores do setor comercial. Durante períodos de crescimento econômico, a troca de emprego se torna mais comum, resultando em maior rotatividade. Entretanto, desta vez, a porcentagem de pessoas que solicitaram demissão alcançou um nível recorde. Muitos estão abandonando permanentemente seus empregos formais em busca de mais flexibilidade e oportunidades de aumentar sua renda.

Esse fenômeno é abordado na primeira matéria de uma série publicada pelo jornal O GLOBO, que explora as mudanças recentes no ambiente de trabalho. Essas transformações não são resultado de ações coletivas, como as promovidas por sindicatos, mas sim de escolhas individuais que as empresas ainda buscam compreender.

 

Nível educacional elevado.

De acordo com Imaizumi, a proporção de demissões solicitadas em comparação com o total de desligamentos é de 45% entre aqueles que possuem ensino superior, completo ou incompleto. Essa taxa é de 42% entre jovens de 17 a 24 anos e de 40% entre funcionárias mulheres e trabalhadores do setor comercial, onde prevalecem jornadas de 6×1 e remunerações baixas.

As razões predominantes para solicitar a demissão ainda incluem a possibilidade de uma nova oportunidade de emprego e remuneração insuficiente, mas esses colaboradores mencionam também outros aspectos, como bem-estar emocional, questões éticas nas organizações e a ausência de flexibilidade na jornada de trabalho.

Aspectos como qualidade de vida, tempo de deslocamento e opções de trabalho remoto e híbrido estão sendo considerados. Desde 2020, o processo de abertura de empresas tornou-se mais simplificado, resultando em um aumento no número de Microempreendedores Individuais (MEIs). Setores que requerem a presença física, como a indústria e a construção civil, estão enfrentando perdas. Além disso, a ascensão do comércio eletrônico e a digitalização são fatores importantes. Com a taxa de desemprego reduzida e as demissões em níveis altos, as empresas precisarão se adaptar às novas dinâmicas de trabalho e repensar suas estratégias para reter os funcionários — analisa Imaizumi.

Com 26 anos, Isadora Teixeira, graduada em Direito, conseguiu um emprego efetivo em um renomado escritório de advocacia no Rio, onde recebeu duas promoções. No entanto, a carga de trabalho exaustiva na área de Direito Societário, a constante incerteza das demandas e o tempo consumido no trânsito a motivaram a pedir demissão. A jovem optou por seguir uma nova trajetória como designer de branding, focando na gestão de marcas.

O elevado salário no trabalho tornava a escolha complicada, porém a visão do futuro não a satisfaazia. Ela notava o dia a dia atarefado dos sócios e percebia um estilo de vida que não desejava seguir.

Um grande número de indivíduos considera a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) uma forma de segurança em relação ao empreendedorismo, no entanto, essa certeza não é absoluta. É possível investir tempo e esforço em uma especialização e, mesmo assim, acabar sendo dispensado. Isso também passou a me incomodar — ela diz.

Isadora economizou dois meses de seu salário, além do bônus anual que recebeu da empresa, para conseguir se desligar em março do ano passado. Com a ajuda de postagens no Instagram e referências, ela conseguiu atrair clientes. Em setembro, ela se mudou da casa dos pais para compartilhar um apartamento com uma amiga. Atualmente, ela trabalha exclusivamente de casa.

Pratico futevôlei pela manhã, dedico tempo à leitura, desfruto de um café tranquilo e, geralmente, inicio meu trabalho depois do almoço. Pode parecer simples, mas enfrento desafios significativos. Contudo, anteriormente, não conseguia chegar à praia às 7h para jogar, pois voltava para casa tarde e dormia apenas três horas. Era um ciclo desgastante, e eu era muito mais estressada — recorda Isadora.

Ela comenta que, no mês anterior, conseguiu ter uma receita maior do que sua remuneração no escritório.

Não havia uma alternativa para mim. Meu único plano, que englobava A, B e C, era fazer com que funcionasse. Deve ser desolador chegar a um ponto na vida e se lamentar por ter vivido, especialmente em relação à carreira, apenas deixando as coisas acontecerem sem realmente se empenhar.

 

Pragmatismo se estabelece como dominante.

Tiago Magaldi, docente do Departamento de Sociologia e do Núcleo de Estudos de Trabalho e Sociedade da UFRJ, que colaborou em uma pesquisa sobre profissionais que atuam em plataformas digitais, afirma que optar por deixar um emprego formal para se dedicar a trabalhos autônomos, como motorista ou entregador de aplicativo, é uma escolha lógica. Essa conclusão foi alcançada após entrevistas com os trabalhadores para o estudo realizado em parceria com Christian Azaïs, Mireille Razafindrakoto e François Roubaud.

 

— Uma das transformações significativas no mundo do trabalho é a deterioração da CLT. Não em sua função protetiva ao trabalhador, mas na visão de inclusão e perspectivas futuras. Esse panorama tem se desmoronado recentemente. Os postos de trabalho formais ao alcance desses profissionais menos qualificados são bastante insatisfatórios. O salário mínimo chega a ser o valor mais alto que conseguem. Para receber mais, acabam aceitando a ausência de um vínculo empregatício. Não são ingênuos subjugados, mas sim fazem uma análise prática da realidade.

O sociólogo se recorda de um ciclo de entrevistas que fez com um entregador em frente a um mercado.

— Ele comentou: “recebo bem mais do que aquele caixa de supermercado com contrato formal”. E exibiu um saldo de R$ 4 mil. Ele não enxerga perspectivas no emprego formal e sente que tem um pouco mais de liberdade em sua carga horária.

Na imagem destacada, Isadora Teixeira, de 26 anos, deixou a carreira jurídica para empreender e hoje valoriza trabalhar em home office  ( Foto: Leo Martins)

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