Caso aprovada, PEC pode mudar regime de aforamento dos “terrenos de marinha”, que diferentemente do que se possa imaginar, não pertencem à Marinha do Brasil e sim à União e hoje são ocupados legalmente
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado fará uma audiência pública nesta segunda-feira (27), para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 que pode “privatizar” (conceder à iniciativa privada) áreas de praia que atualmente pertencem à União. O texto diz respeito aos chamados “terrenos de marinha”. Se a PEC passar para a fase de votação no plenário e for aprovada, essas áreas serão transferidas a estados e municípios de forma gratuita ou a ocupantes privados mediante pagamento.
Diferentemente do que se possa imaginar, os terrenos de marinha não pertencem à Marinha do Brasil. São propriedades da União estabelecidas há quase dois séculos, em 1831, que compreendem áreas localizadas na costa marítima, margens de rios e lagoas — até onde houver influência das marés —, manguezais, apicuns, além das que contornam ilhas costeiras e oceânicas.
Para definir se o terreno é considerado “de marinha”, ou não, é necessário destacar que são faixas contadas a partir da linha máxima atingida pela maré cheia do ano de 1831 até 33 metros para dentro do território. O objetivo para a demarcação, na época, era garantir uma faixa livre de edificações para fortalecer o acesso e a defesa do território frente a ameaças externas.
Os imóveis construídos nesses terrenos são legais e seus moradores possuem escritura, no entanto, eles são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa de aforamento sobre o valor do terreno. Isso quer dizer que a posse do imóvel é compartilhada entre a União e um proprietário privado, podendo este ser uma pessoa física ou jurídica.
Do modo como está a lei hoje, essas praias que também estão sob posse da marinha não podem ser fechadas para entes privados, ou seja, qualquer cidadão pode alcançar o mar. Com a extinção do terreno de marinha, o proprietário se tornaria o único dono do terreno. Dessa forma, seria possível a ele fechar essa passagem – por isso a ideia de “praia particular”.
Os moradores que ocupam essas áreas estão sujeitos ao chamado regime de aforamento. Eles são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa sobre o valor do terreno. A propriedade do imóvel é compartilhada na proporção de 83% do valor do terreno para o cidadão e 17% para a União. Por causa dessa divisão, ocupantes destes imóveis pagam, atualmente, duas taxas para a União: o foro e o laudêmio.
A PEC 3/2022 tem origem em outra proposta de emenda, de 2011. No Senado, o relator da matéria é Flávio Bolsonaro (PL-RJ) — filho 01 do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se mostrou favorável a proposição. O texto extingue a competência da União em gerir os terrenos, por meio da remoção do artigo 20 da Constituição Federal e do parágrafo 3º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
“Não nos parece justo que o cidadão diligente, de boa-fé, que adquiriu imóvel devidamente registrado e, por vezes, localizado a algumas ruas de distância do mar, perca sua propriedade após vários anos em razão de um processo lento de demarcação. O fato é que o instituto terreno de marinha, da forma que atualmente é disciplinado pelo nosso ordenamento, causa inúmeras inseguranças jurídicas quanto à propriedade de edificações”, defendeu o relator.
A audiência foi requerida pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), contrário à proposta. Segundo o parlamentar, é necessário um debate mais aprofundado sobre o tema, tendo em vista que o texto modifica a Constituição Federal de 1988. Representantes do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), da Advocacia-Geral da União (AGU), da Secretaria de Patrimônio da União, do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e da Associação S.O.S. Terrenos de Marinha já confirmaram presença.
“Cancunização”
A aprovação da PEC na Câmara, ainda em fevereiro de 2022, ocorreu na mesma semana em que foi aprovado o projeto de lei que regulariza jogos de azar no Brasil. As duas propostas — que seguem para análise no Senado — são categorizadas por organizações que atuam na temática do meio ambiente como “cancunização do Brasil”, em referência à cidade de Cancún, no México, para caracterizar um avanço muito forte do turismo sem fiscalizações.
Uma nota do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha, da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional, afirma ainda que a proposta representa uma “grave ameaça ambiental às praias, ilhas, margens de rios, lagoas e mangues brasileiros e um aval para a indústria imobiliária degradar, além de expulsar comunidades tradicionais de seus territórios”.
Para o coordenador Executivo no Instituto Linha D’Água, Henrique Kefalas, o instrumento da PEC como alternativa para a solução às terras de marinha não seria o melhor caminho a ser adotado pela legislação. “De fato, vemos com bastante preocupação essa transferência da propriedade, ainda que a gente entenda que a transferência da gestão já existe. Já está na lei, e é isso que precisa ser mais bem implementado”, argumenta.
“Esperamos que a audiência pública chame a atenção para esse tema e que a gente consiga argumentar para os parlamentares que é uma solução ruim para um problema real. Então precisamos, na verdade, discutir outras soluções, outros caminhos, que não seja uma emenda à Constituição simplista e que não resolve o problema. Pelo contrário, pode agravá-lo”, acrescenta, ainda, o coordenador.
A proposta foi aprovada na Câmara em fevereiro de 2022. Na ocasião, integrantes do governo Bolsonaro se manifestaram contra a PEC. O impacto da PEC, tanto no bolso dos proprietários como nas contas do governo, é bilionário, e obrigaria os proprietários a pagarem, em até dois anos, 17% dos valores de seus bens.
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