Brasil 1964 e Portugal 1974: dois países, dois abris, dois caminhos opostos

Henrique Acker (correspondente internacional)    –  Cerca de 400 mil brasileiros vivem em Portugal e tantos outros pensam em migrar para lá todos os anos. É o maior grupo de estrangeiros naquele país. O que leva a maioria a deixar tudo para trás é a falta de oportunidades no Brasil e a qualidade de vida na “terrinha”.

O que a maioria ignora são as razões de um pequeno país oferecer dignidade ao seu povo, enquanto um país riquíssimo como o Brasil segue patinando em suas contradições, colocando a maioria dos seus cidadãos na marginalidade e sem direitos básicos.

Os 60 anos do golpe militar de 1 de Abril de 1964, no Brasil, e os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974, em Portugal, formam um paralelo importante para se entender o que ocorreu nos dois países nas últimas décadas.

 

Em meio à Guerra Fria

Um único ponto em comum entre o golpe de 1964  no Brasil e o levante de 1974 em Portugal é o papel determinante dos militares nos dois episódios. Os oficiais das forças armadas portuguesas e brasileiras viviam sob a Guerra Fria, num mundo polarizado entre o bloco capitalista e o bloco socialista. No entanto, escolheram caminhos totalmente diferentes, opostos.

Formados com base na ideologia da Segurança Nacional e da existência de um “inimigo interno” a combater (o próprio povo), generais brasileiros obtiveram o apoio irrestrito do governo dos EUA para colocar as tropas na rua, derrubar o Presidente João Goulart e impor uma ditadura que cassou, prendeu, torturou, matou, e que durou por 21 anos.

Cansados de uma guerra colonial na África, que vitimou quase 9 mil soldados e deixou cerca de 30 mil feridos entre seus comandados, oficiais portugueses decidiram pôr fim a uma ditadura fascista que durou 48 anos. Sem sacrificar sequer uma vida, sem torturar e sem impor nada, devolveram a democracia aos portugueses, libertando os presos políticos, pondo fim à censura e propondo direitos sociais, econômicos para todos.

Brasileiros levados presos nas ruas pelos militares ditadores

 

A serviço das classes dominantes

O verdadeiro motivo que levou à conspiração e ao golpe militar de 1964 foi impedir as chamadas reformas de base, propostas pelo então Presidente João Goulart. Essas reformas visavam dar ao povo brasileiro melhores condições de vida, para ampliação da produção e do consumo (*).

Formados pela Escola das Américas, no Panamá, que treinou mais de 60 mil oficiais do Brasil e de outros países da América Latina por décadas, os oficiais militares brasileiros identificavam no avanço dos direitos sociais e econômicos um perigo para os interesses das classes dominantes.

Entre as primeiras medidas que a ditadura brasileira adotou estão: revogação da Lei de Remessa de Lucros pelas multinacionais, do decreto que desapropriava terra às margens das estradas para a reforma agrária, revogação da nacionalização das refinarias particulares de petróleo e do decreto que congelava os aluguéis, além de restringir o crédito às pequenas e médias empresas.

No campo trabalhista houve grande retrocesso, com o fim da lei que garantia estabilidade aos trabalhadores após dez anos de trabalho na mesma empresa, substituída pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Os reajustes salariais foram limitados à revisão anual com base na média do salário dos 24 meses anteriores. Assim, garantiu-se a superexploração do trabalho e a máxima acumulação de capital às grandes empresas.

Para manter a política do arrocho salarial, o caminho encontrado foi a Lei nº 4.330, de 1º de julho de 1964, que proibiu a greve no serviço público, nas empresas estatais e nos serviços essenciais. Além disso, a ditadura impôs a intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos, que passaram a ser comandados por pelegos a serviço do regime.

A Junta Militar era comandada por oficiais das três forças armadas, que governavam com plenos poderes por meio de Atos Institucionais. Depois de fechar o Congresso, cassar lideranças de oposição, proibir e reprimir as manifestações populares, no final de 1968, a Junta baixou o AI-5. A partir dali, foi proibida qualquer forma de organização popular, instituiu-se a censura prévia e foram suspensos direitos constitucionais, o que criou as condições para a prisão, tortura e assassinato de opositores do regime.

 

Militares pela democracia

Em Portugal, no 25 de Abril de 1974, os militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) foram recebidos nas ruas com entusiasmo pela população. Os três eixos do MFA foram imediatamente adotados pela Junta de Salvação Nacional: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver.

As primeiras medidas da Junta foram a extinção da polícia política (PIDE/DGS) e da Censura, a legalização dos sindicatos e os partidos, além da libertação dos presos políticos da Prisão de Caxias e de Peniche.

Já nos primeiros anos da revolução, o governo português assinou tratados com os movimentos de libertação em Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde, retirando as tropas da África, pondo fim a séculos da política colonialista mantida até então pelo salazarismo.

O povo português foi protagonista de inúmeras lutas e conquistas nos primeiros anos da Revolução. No campo avançou a reforma agrária, com os camponeses assumindo e produzindo nas terras ocupadas; grande parte das empresas fechadas pelos patrões foram assumidas pelos próprios trabalhadores; moradores de bairros de periferias avançaram na conquista de terrenos para levantar suas moradias.

Em 1975 foram realizadas as primeiras eleições livres e diretas, depois de décadas de fascismo. Em 1976 os deputados da Assembleia da República promulgaram a Constituição Portuguesa, assegurando inúmeras conquistas à população, em vigor até hoje.

Algumas delas são o Sistema Nacional de Saúde (SNS), a escola pública em tempo integral, o salário-mínimo nacional, a instituição da aposentadoria para todos os portugueses, a garantia de inúmeros direitos civis para as mulheres (divórcio, aborto, etc).

Soldados das FAP,  crianças e adultos: relação de congraçamento nas ruas de Portugal.

 

Resultados diferentes

Os resultados desses dois abris são visíveis. Os 21 anos de ditadura militar deixaram para o Brasil um rastro de graves problemas, que ampliaram ainda mais o fosso entre os mais ricos e a grande massa de brasileiros pobres.

Os herdeiros dos velhos coronéis transformaram-se em coronéis urbanos, formando o Centrão, que hoje domina o Congresso Nacional. Os antigos grupos de quadrilheiros foram substituídos por milícias, impondo suas leis pela força nas comunidades. Os ideais dos golpistas de 1964 continuam vivos, hoje reivindicados pelo bolsonarismo.

No Brasil até hoje não houve reforma agrária, e o agronegócio de commodities manda no campo; grandes conglomerados de mídia dominam o mercado da comunicação e da publicidade; os serviços públicos enfrentam inúmeras dificuldades para atender a grande massa da população, que não pode pagar por planos de saúde e escolas particulares; cinco grandes bancos dominam 85% do mercado financeiro e bancário, impondo taxas de juros extorsivas aos brasileiros e estrangulando o país com a chantagem dos títulos da dívida pública.

Em Portugal, a Revolução de Abril de 1974 teve o efeito contrário da ditadura militar no Brasil. A democracia, ainda que incompleta e limitada, fez um país pequeno e pobre da Europa avançar em todos os setores, oferecendo à sua população um mínimo de dignidade  para viver, o que aos olhos dos imigrantes brasileiros representa um alívio para si e seus filhos.

Uma série de mudanças não foram alcançadas como se desejava ou permanecem incompletas. Muitos dos antigos beneficiários do regime salazarista retornaram e restabeleceram seus negócios. Não é uma sociedade perfeita ou exemplar e alguns dos ideais anunciados pelo MFA perderam-se pelo caminho.

A história demonstrou que a opção pelo caminho da democracia ou da ditadura fez uma grande diferença para os dois povos. No Brasil, até hoje se conspira nos clubes militares e na formação de oficiais a partir dos colégios e academias militares, enquanto em Portugal a Associação 25 de Abril, que reúne os veteranos da Revolução, ainda luta pelo aprofundamento da democracia com base nos princípios do MFA. (Fotos: Reprodução)

 

Por Henrique Acker (correspondente internacional)

 

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(*) Entre as medidas propostas pelo governo João Goulart estavam a reforma agrária (democratização do acesso à terra), reforma urbana (fornecimento de habitação condigna a todas as famílias), reforma fiscal (limitar a remessa de lucros das grandes multinacionais para o exterior e aumentar a arrecadação do Estado brasileiro), reforma bancária (oferta de crédito aos pequenos e médios produtores rurais), reforma educacional (Plano Nacional de Alfabetização e Reforma Universitária) e a reforma eleitoral (legalização de todos os partidos e direito de voto para analfabetos e militares de baixa patente).

 

Fontes:

https://clubemilitar.org/comunicados/nota-sobre-31-de-marco/

https://files.dre.pt/1s/1976/04/08600/07380775.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_das_Am%C3%A9ricas

https://www.scielo.br/j/sssoc/a/NGwM4fhVhW4rhdnTNXZhpmm/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional_n.%C2%BA_5

https://escolaamiga.pt/blog/485f9848-a6ab-4f64-b00f-05e7f5b6171e

https://www.rtp.pt/noticias/40-anos-do-25-de-abril/o-que-mudou-em-40-anos_n728411

https://a25abril.pt/

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