A vigilância teria sido particularmente intensa em 2021, pouco antes do período pré-eleitoral
A Polícia Federal (PF) decidiu iniciar uma investigação sobre o Exército por suspeita do uso e da compra de softwares de inteligência, financiados com verbas provenientes do Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro, durante a gestão de Walter Braga Netto, ex-ministro-chefe da Casa Civil no governo de Jair Bolsonaro (PL). Uma das ferramentas adquiridas foi o FirstMile, que consegue apontar a geolocalização aproximada de aparelhos celulares e é o centro da Operação Última Milha, que afastou diretores e prendeu oficiais da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na sexta-feira (20).
A investigação começou após a PF realizar buscas na sede da empresa Cognyte, em Santa Catarina, onde foi apreendida a base de dados do FirstMile, que é o foco central da Operação Última Milha. De acordo com fontes que estão a par do caso e foram consultadas pela Folha de S.Paulo, é necessário investigar se o Exército fez uso irregular do referido software, assim como foi apontado em relação à agência de inteligência.
O caso já estava sendo apurado pela PF no âmbito da operação Perfídia, que analisa possíveis irregularidades em contratos da gestão de Braga Netto durante a Intervenção Federal em 2018, no Rio de Janeiro. Após a operação contra a Abin e a empresa que comercializa o FirstMile, o caso também passou a ser abordado nos inquéritos sob a relatoria do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.
O Exército respondeu, por meio de nota, que “quaisquer esclarecimentos solicitados pela Polícia Federal sobre o software em questão serão prestados exclusivamente aquele órgão”. A diligência na sede da Cognyte é considerada fundamental para o andamento das apurações, uma vez que há provas que sustentam a possibilidade de uso ilegal do software. A busca na Abin também foi apontada como crucial para apreender pastas com dados deletados por oficiais de inteligência, que a PF acredita conter informações de pessoas espionadas ilegalmente.
Em relação às indagações da Folha, o Exército optou por se valer da Lei de Acesso à Informação para não fornecer detalhes sobre a aquisição e uso dos softwares de inteligência. No entanto, o Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro confirmou o uso de recursos para abastecer a Força Terrestre com equipamentos de inteligência, destacando a possibilidade de utilização em prol dos órgãos de segurança pública do Rio, mediante necessidade e acordo com a União.
Um dos representantes da Cognyte é Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do ex-ministro do governo Bolsonaro, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Ele foi alvo de buscas na operação Última Milha e prestou depoimento à PF. A investigação revelou que o software secreto foi utilizado pela Abin sem protocolo oficial ou autorização judicial nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, tendo monitorado servidores públicos, políticos, jornalistas, advogados e juízes.
Com o orçamento turbinado, de R$ 1,2 bilhão, o Gabinete da Intervenção pagou quase R$ 40 milhões para a Verint Systems, no Brasil chamada de Cognyte, grupo israelense que tinha a fabricante da FirstMile sob seu domínio. Não se sabe, porém, se o valor foi gasto somente com a aquisição do FirstMile ou se outros sistemas estavam inclusos. Apesar de a compra ter sido realizada no âmbito da intervenção, o software não foi utilizado somente para o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro. Ele ficou sob a administração do Exército.
Quando analisou o contrato, o Tribunal de Contas da União apontou para o fato de os softwares terem sido adquiridos para beneficiar as Forças de Segurança do Rio de Janeiro, mas estarem sob posse do Exército Brasileiro. O fato de o Rio de Janeiro depender da liberação de uso das Forças Armadas, segundo o relatório do TCU, indica que aquisição pode ser “considerada como desvio de finalidade”.
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