Chacina de Carajás completa 27 anos sem a questão agrária ter sido resolvida

Em abril de 1996, 21 trabalhadores rurais foram assassinados; para quem sobreviveu, a dor transformou-se em luta.

Sob Bolsonaro, número de conflitos fundiários foi o maior em 10 anos

 

 

Hiroshi Bogéa – A chacina que ceifou a vida de 21 camponeses no município de Eldorado do Carajás, no sudoeste do Pará, completa 27 anos nesta segunda-feira, 17.

Era uma quarta-feira, por volta das 16h, do dia 17 de abril de 1996.

Cerca de 1,5 mil pessoas estavam acampadas na curva do S, em Eldorado do Carajás, sudeste do Pará, em forma de protesto.

O objetivo era marchar até a capital Belém e conseguir a desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por 3,5 mil famílias sem-terra.

Três meses antes do massacre, em 5 de março de 1996, as famílias haviam ocupado a fazenda Macaxeira – em Curionópolis, município vizinho a Eldorado – e buscavam negociação com Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para iniciar o processo de desapropriação da terra improdutiva.

Sem respostas e tendo recebido promessas que nunca foram cumpridas, os camponeses decidiram protestar na capital.

A marcha partiu de Curionópolis e pretendia passar por Eldorado do Carajás e Marabá, antes de chegar a Belém.

A caminhada que tinha começado no dia 10 de abril foi parada com sangue em um ataque da Polícia Militar que ficou mundialmente conhecido como o Massacre de Eldorado do Carajás.

Um total de 155 policiais militares estiveram envolvidos na operação.

Para muitas das famílias que tiveram suas vidas marcadas pela morte, a luta não terminou naquele massacre.

Como repórter, fiz trabalho jornalístico durante cinco dias, acompanhando o conflito e seus desdobramentos.

Lembro bem, na hora dos ataques da PM aos trabalhadores rurais, acho que passava das 17 horas, ou próximo desse horário, e eu me encontrava numa lanchonete em Eldorado do Carajás, sede do município distante 8 km da Curva do S, local onde ocorreu a chacina – buscando alimentação por causa do dia pesado que havia passado acompanhando a movimentação dos trabalhadores rurais barrados em sua trajetória para Belém.

Minutos depois de ter chegado na lanchonete, não demorou cinco minutos, a correria de pessoas pelas ruas da cidade.

-“A polícia está matando gente lá na “Curva do S”, já mataram mais de 30”, disse um senhor  que passava às pressas à frente da lanchonete.

Não terminei meu lanche, saindo correndo em meu carro, serra abaixo (a curva do S fica no pé de uma pequena serra).

Uma balbúrdia, já no meio da descida da curva, gente correndo, carros atravessados na rodovia, tive que deixar meu veículo uns 2 km para atrás, correndo em direção ao conflito, que até aquele momento eu ainda não tinha conhecimento de sua dimensão.

Quando cheguei exatamente no ponto onde o aparato policial disparou contra os manifestantes, já dava para ver a gravidade do fato: muito sangue na pista, cenário muito forte de destruição.

As marcas estavam por todos os cantos, muitas coisas deixadas para trás

Pânico generalizado: mães correndo com filhos pequenos nos braços, outras puxando os maiores pelas mãos, em louca correria, choros, gritos de pedido de ajuda, uma cena de guerra.

Pessoas ensanguentadas correndo em meio ao chão de terra batida, tiros, sangue, desespero.

A agressão durou praticamente duas horas.

Eu, sinceramente, achei aquilo tudo surreal, nunca imaginaria viver um cenário de genocídio sem saber o que fazer, porque o espírito profissional exigia que eu corresse atrás de registros, mas o lado humano foi mais forte, me deixando chocado diante das cenas sangrentas.

Do alto de um caminhão da PM, dois soldados ainda atiravam a esmo, como quem quisesse acertar o primeiro ao alcance da bala, ou querendo simplesmente fechar com bala de ouro o trágico episódio de mortes.

Eu vi, dois corpos estendidos ao chão, não sei se respiravam,  já que estavam cercados por outros companheiros do infortúnio.

Fazendo um resumo do massacre, os  trabalhadores foram cercados pela Polícia Militar. De um lado policiais do quartel de Parauapebas, do outro policiais do batalhão de Marabá.

Dois dias depois, a conta final do genocídio: dos 19 mortos, oito foram assassinados com seus próprios instrumentos de trabalho: foices e facões, os outros 11 foram alvejados com 37 tiros, uma média de quatro tiros para cada pessoa.

Outras 79 pessoas ficaram feridas. Duas delas faleceram no hospital.

Naquele tempo tinha, claro, a divisão dos apoiadores e dos não apoiadores do MST.

Mas tinha também uma sensação muito forte de medo sobre o que o Estado podia fazer com as pessoas.

Em Eldorado naquela época, eu lembro que as famílias dos trabalhadores rurais passaram a ter muito receio.

Um mês depois do massacre, retornei a Eldorado do Carajás e ouvi de mães que tiveram parentes vitimados, recomendações as colegas delas que trabalhavam em uma escola dizendo ‘tenham cuidado, quando vocês verem a polícia em algum lugar, entrem em uma outra rua, lembra do que a polícia fez lá na curva do S com os sem-terra”.

Ou seja, o genocídio foi contra a sociedade, pois foi contra toda a classe trabalhadora do campo e da cidade.

Depois de acompanhar o triste recolhimento de corpos das vítimas do ataque do Estado, eu passei por um momento de pânico íntimo.

Veio o choro, lágrimas e a certeza de que o país vivia o momento mais representativo do instinto selvagem produzido pelas forças policiais criadas para proteger a sociedade.

Não consegui retornar a Marabá, estava muito abalado – decidindo permanecer na sede de Eldorado.

Depois dos crimes cometidos pela PM,  – cheguei outra vez à cidade e ela se encontrava às escuras.

Um apagão ocorreu logo no início da noite.

Eldorado, em meio ao breu, representava a escuridão verdadeira do país dos criminosos estatais.

O mais desalentador, ao se reverenciar a memória dos 21 mortos em Eldorado do Carajás, é constatar que o genocídio praticado pelo Estado segue sendo mote de “inspiração” da extrema direita;

Em 2023, 27 anos depois da chacina, os movimentos populares e indígenas passam a enfrentar a organização de novas “milícias rurais”.

Em recente entrevista, Lucineia Durães, da direção nacional do MST, diz que “vivemos uma reorganização da UDR”, referindo-se à União Democrática Ruralista, entidade do patronato rural criada para reagir organizada e violentamente aos avanços dos movimentos em defesa da reforma agrária nos anos 1980 e 1990.

Em todo o país, diz ela, a articulação de fazendeiros tem o apoio público de sindicatos rurais, entidades como as federações da agricultura e pecuária, e de políticos de extrema direita.

“Quem são eles? São aqueles bolsonaristas radicais que, ao serem obrigados a sair da frente dos quartéis, sair do meio das BRs, estão procurando alvo. E eles entendem que o alvo somos nós, pelo que nós representamos: camponeses, comunidades de fundo e fecho de pasto, ribeirinhos, indígenas”, elenca Durães.

 

Governo Bolsonaro

Somente nos três primeiros anos de gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) concentraram 5.725 confrontos no campo.

Os números são os maiores registrados desde o início da série histórica, em 1985, e estão no levantamento Conflitos no Campo, Brasil 2021, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Segundo o levantamento, divulgado nesta segunda-feira (18/4), Rondônia foi o estado com o maior número de assassinatos, registrando 11 mortes, em 2021, e um massacre, ocorrido em terras indígenas ianomâmi. O estado do Maranhão vem em seguida, com nove assassinatos, depois Roraima, Tocantins e Rio Grande do Sul, cada um com 3 assassinatos. As vítimas foram: 10 indígenas, nove sem-terras, seis posseiros, três quilombolas, dois assentados, dois pequenos proprietários, duas quebradeiras de coco babaçu e um aliado.

O estudo mostra ainda que o número de sem-terras assassinados aumentou 350% de 2020 para 2021, passando de dois para nove no ano. As mortes em consequência do conflito no campo saltaram de nove, no ano anterior, para 109, em 2021, representando um aumento de 1.110%.

Os dados não incluem estudos do último ano do bolsonarismo.  (Fotos Arquivos MST/Reprodução)

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